Ameaça

71% dos sítios arqueológicos em florestas na Amazônia Legal estão sob áreas desmatadas

De um total de 3.150 sítios em áreas desmatadas analisados pela reportagem, 12,5% (394) localizam-se em Unidades de Conservação, Terras Indígenas ou Quilombolas

07/02/2024 10:30
71% dos sítios arqueológicos em florestas na Amazônia Legal estão sob áreas desmatadas

A seca que assolou o Amazonas no ano passado não apenas comprometeu a fauna, a flora e a sobrevivência da população, como também atingiu parte da história humana ancestral da Amazônia. A baixa dos rios trouxe à luz pelo menos três sítios arqueológicos antes desconhecidos, um fenômeno que pode se repetir em 2024. Com a continuação do El Niño até fevereiro deste ano, a previsão é de uma estação chuvosa amazônica mais fraca e que pode atrasar ainda mais o reabastecimento da água dos rios.

 

Com indícios de presença humana que remontam mais de 10 mil anos, a Amazônia Legal possui um total de 6.178 sítios arqueológicos cadastrados no Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão do Governo Federal (SICG) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), segundo os dados coletados até setembro de 2023. Essas áreas emergem nas paisagens como espaços vivos de memória e identidade. São fontes dinâmicas de conhecimento, onde gerações de pessoas teceram suas existências e construíram suas vidas através do tempo, e que ressoam nas com práticas culturais e ambientais contemporâneas.

 

Dentre esses mais de 6 mil sítios, 4.415 estão em áreas de floresta – dentre eles, 71% (3.150) estão em áreas de desmatamento e já foram impactados pelo problema. Esses dados são resultado de um levantamento exclusivo da InfoAmazonia, com base no SICG e nos dados de desmatamento para toda a série histórica disponível (1988 a 2022) do Prodes, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que produz a taxa de desmatamento anual da região.

 

A escalada da perda de cobertura florestal aliada à extração desenfreada de recursos, sobretudo na Amazônia, pode estar ameaçando todo esse patrimônio arqueológico, impactando na perda de contextos arqueológicos que ainda não foram integralmente descobertos e/ou estudados em pesquisas científicas e pelas comunidades locais.

 

Segundo informações do Prodes, são consideradas áreas desmatadas aquelas onde houve “a remoção completa da cobertura florestal primária por corte raso”. Essa técnica se dá quando, em uma determinada área, todas as árvores (ou a maioria delas) são derrubadas ao mesmo tempo e, em geral, de maneira uniforme. O estado do Acre é o que tem uma quantidade excepcionalmente alta de sítios em áreas desmatadas, atingindo o percentual de 97% em 2023. Em seguida, vem os estados de Mato Grosso, com 79%, Rondônia, com 76%, e o Maranhão, com 73%. Pará fica com 66%, enquanto Roraima e Tocantins despontam com as menores taxas em áreas florestais, de aproximadamente 36% e 40%, respectivamente.

 

Todos esses números lançam luz a um fenômeno já conhecido por cientistas: a relação intrínseca entre o desmatamento, a ocupação urbana e a descoberta de sítios arqueológicos. Dada a natureza enterrada ou semienterrada de muitos desses locais, áreas desmatadas e/ou ocupadas, geralmente, revelam vestígios do passado. Contudo, é essencial considerar que o desmatamento na Amazônia é uma questão complexa e multifacetada.

 

A busca por soluções equilibradas exige um entendimento do patrimônio arqueológico da região, que há décadas passa por diversos tipos de dificuldades, desde recursos humanos e financeiros, difícil acesso a locais, políticas públicas insuficientes e também pela incompleta sistematização dos dados arqueológicos já existentes — as informações sobre os sítios arqueológicos disponibilizados pelo Centro Nacional de Arqueologia (CNA) e pelo IPHAN mostram as dificuldades desses órgãos para conseguir acompanhar o progresso de tecnologias de armazenamento de grandes volumes de informação.

 

Além do SICG, base oficial com as coordenadas dos sítios disponibilizada pelo IPHAN, há ainda uma outra base, a do Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA), que inclui mais 2.114 sítios, mas sem os dados de localização de cada um deles. Mesmo entre os dados da base do SICG, que apresenta os pontos de localização dos mais de 6 mil sítios, apenas 1090 sítios (ou 17%) possuem dados geoespaciais com área delimitada (camadas de polígonos). Essas informações mais detalhadas e precisas seriam fundamentais para melhor entendimento do impacto e avanço da ocupação e exploração sobre estas áreas.

 

Apesar do termo “sítio arqueológico” não ser de todo estranho, poucos brasileiros sabem realmente o que significa. Conforme a Portaria n° 316/2019 do IPHAN, um lugar é considerado um sítio arqueológico quando mostra sinais de atividade humana em épocas pré-coloniais (antes da invasão dos colonizadores europeus) ou em épocas históricas (quando já existiam registros escritos e documentos). Esses sinais podem ser vistos no chão, escondidos ou até debaixo d'água.

 

Para o governo brasileiro reconhecer oficialmente um sítio arqueológico, é fundamental que as descobertas sejam estudadas considerando o todo, desde os objetos encontrados até as camadas de terra que se acumularam ao longo do tempo, além de outras características ambientais que ajudam a contar a história do lugar.

 

Uma vez cadastrado como um sítio arqueológico, a gestão e preservação desse patrimônio fica a cargo do IPHAN, sendo vedado o aproveitamento econômico, destruição ou mutilação desses locais antes da realização de pesquisas por arqueólogos devidamente autorizados pelo órgão, conforme a Lei 13.653.

 

Mesmo sob pressão, UCs representam proteção para sítios arqueológicos 
 

As pesquisas arqueológicas sistemáticas na Amazônia começaram na década de 40, marcada por expedições como as da arqueóloga americana Betty Meggers, pioneira em estudos na Amazônia e que contribuiu de maneira crucial para a área, inclusive na execução do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazônica (PRONAPABA). Mas de maneira problemática, por décadas a abordagem científica utilizada entre pesquisadores, ainda que tenha produzido muitos dados em relação à arqueologia da região, foi centrada em um viés colonizador, com uma visão eurocêntrica, que frequentemente desconsiderava a complexidade e a diversidade das culturas amazônicas.

 

Atualmente, os estudos arqueológicos sofrem pressão para uma prática mais integrada e colaborativa com a população. O trabalho em conjunto com as comunidades locais, que valoriza os saberes tradicionais, reafirmam a urgência e a importância de que os povos da Amazônia sejam protagonistas na construção de conhecimento sobre seu próprio legado ancestral.

 

Dos mais de 3 mil sítios localizados em áreas desmatadas pela reportagem, 12,5% (394) localizam-se em Unidades de Conservação, Terras Indígenas ou Quilombolas. Nos últimos 15 anos, o aumento no número de sítios em zonas florestais desmatadas foi de 8% para áreas protegidas e 23% para terras comuns, indicando que esses locais, mesmo sob pressão, proporcionam um nível de salvaguarda maior também para os sítios arqueológicos.

 

A InfoAmazonia segmentou esses locais entre terras comuns e áreas protegidas. Até 2022, sítios arqueológicos em áreas florestais com desmatamento alcançaram uma taxa acumulada de 76% para terras comuns, enquanto para áreas protegidas foi de 45%. Em destaque, as Terras Indígenas apresentam o menor índice de sítios em áreas desmatadas, com 21%, seguidas pelas Unidades de Conservação com 52% e, por fim, as Terras Quilombolas com 59%.

 

Fonte: infoamazonia.org

Foto: InfoAmazonia com base nos dados do IPHAN e PRODES (INPE).

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