Mudanças tecnológicas, complexidade social e política: o mundo não é mais "curral eleitoral"

Ao transformarem, radicalmente, o modelo de sociabilidade, as novas tecnologias impactaram o cenário da política e já ameaçam os tradicionais “coronéis”.

Alex Fiúza de Mello | Sociólogo e Cientista Político

28/09/2024 11:00
Mudanças tecnológicas, complexidade social e política: o mundo não é mais
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s políticos ainda não compreenderam que o mundo não é mais um “curral”. Que na era da internet, da informação e da comunicação em tempo real, o tradicional “voto de cabresto” se dissipou. Que a retórica populista e demagógica do passado não mais resiste às imagens e às denúncias do Instagram. Que não há mais espaço, portanto, para “coronéis” - ou “caciques”.  


Argumentos em vídeo e a opinião dos “influencers” - e não mais a propaganda eleitoral maquiada - determinam os rumos dos sufrágios/Fotos: Divulgação

Hoje, a batalha política se processa em território virtual. São as redes sociais, cada vez mais, que decidem as disputas nesse novo “campo de guerra”. E as “armas” mais eficazes já não são panfletos impressos ou discursos de palanques, ao estilo presencial. Agora são lives produzidas “à distância”, de efeito instantâneo e amplificado, “viralizadas” em rede para todos os cidadãos colados nos iPads, nos mais inimagináveis becos e trincheiras, onde jamais os recursos analógicos ousariam acessar.  

 

São os argumentos - sem intermediários - dos políticos em vídeo e a opinião online dos influencers - e não mais a propaganda eleitoral maquiada dos experts da mídia televisiva - que determinam os rumos dos sufrágios. A internet recriou a ágora - antiga invenção da democracia ateniense -, só que agora, em modelagem virtual, igualmente participativa e interativa; até, mesmo, mais universal e inclusiva - já que, hoje, todos são “cidadãos” e “homens livres” -, com abertura a que todos (inclusive os “imbecis”) tenham o direito de se pronunciar a todos, em suas opiniões, em “praça pública” – recomposta nas telas – e a receber, incontinenti, os feedbacks (ou não) de suas manifestações. 

 

Sociedade “em rede”

 

Sim, o mundo mudou; e, com ele, a política. A “sociedade em rede” instaurou uma nova ordem social, inédita em sua configuração e dinamismo, mais mutante e complexa, diversificada e exigente, com suas próprias “leis” e “mecânica” de funcionamento, agora radicadas numa escala mais elevada de interdependência entre as esferas da vida social e seus “politizados” atores. 

 

Na alta modernidade em que vivemos, os impactos da técnica descolaram as experiências humanas - e a consciência social - das costumeiras e limitadas fronteiras da “aldeia”. Enquanto  nesta, as noções de tempo e espaço estiveram sempre vinculadas à de “lugar” (“quando”  implicava “onde”), o esvaziamento do tempo, isto é, a superação de sua dimensão cultural  localizada e restrita e a sua substituição por parâmetros mais universais de contabilidade interativa (dilatados sobre o planeta) aportam uma inédita dinâmica de sociabilidade, no âmbito  da qual as coisas acontecem e são registradas, programadas e vivenciadas por meio de  interconexões que ultrapassam os limites do espaço circunscrito ao ambiente local.  Redimensiona-se, em consequência, a própria noção de “espaço”, culturalmente percebida e experimentada, traduzida pela ideia siamesa de esvaziamento do espaço. As relações, assim, deixam de se circunscrever apenas aos sujeitos corporalmente presentes para interconectar atores fisicamente distantes - os “ausentes - presentes”, no dizer do sociólogo inglês Anthony Giddens –, que passam a “intervir” na cena local, condicionando-a. 

 

O todo das partes

 

O “local”, no atual cenário virtual e globalizado, não mais exprime uma experiência cultural limitada às pregressas fronteiras domésticas, “tribais”, comunitárias, mas evidencia a presença do “macro” no “micro”, do todo nas partes, do conjunto na particularidade. Está-se, por  conseguinte, num outro tipo de sociedade, em que o cotidiano e o modelo cultural de vida  envolvem significados, normas e condicionantes situados num outro patamar de dinamismo e  complexidade, mais expansivo e flexível, numa espécie de passagem de um estado de rigidez  societária, que historicamente entrou em ebulição, para outro de sociabilidade em que a fluidez  das coisas, pelo impacto do emprego das tecnologias - que não param de evoluir -, torna-se o  conteúdo das formas - ou a ausência definitiva dessas. Um estado permanente de desencaixes e reencaixes, de desterritorializações e reterritorializações que impregnam todas as esferas do mundo da vida - e do sistema -, impactando, inexoravelmente, na arena política - já sujeita a novas e imprevisíveis metamorfoses decorrentes do avanço da “revolução 5G” em curso, traduzida no uso da quinta geração de internet móvel em sistema sem fio. 

 

O novo e o velho

 

O ritmo do movimento social, ancorado na base material das inovações tecnológicas, não para, assim, de sofrer subversões: o espaço deixa de ser “lugar” para se tornar “situação”; o presente, antes que se faça “agora”, já é passado; o “novo” é velho; a “novidade”, arcaica; o futuro - como se fosse o eterno presente tornado passado - encontra sua simbologia arquetípica no computador de última geração, já programado para nascer ultrapassado. Na expressão do velho filósofo alemão: “tudo que é sólido se desmancha no ar” - ou vira “líquido”, na atualização semiótica proposta pelo cientista social polonês Zygmunt Bauman.

  

Implacável e exigente

 

As antigas sociedades “fechadas”, de domínio restrito - reinos habituais do “coronelismo” -, cederam lugar às sociedades “abertas”, mais fluidas e de difícil controle. Mais informada e “plugada” - ainda que deveras superficial no domínio do conhecimento -, a população “conectada”, epidermicamente “politizada”, mais cônscia de seus direitos, tornou-se implacavelmente exigente. Cobra do Estado e dos políticos atuações (e soluções) mais republicanas e eficazes, voltadas ao bem comum e ao interesse coletivo. Já não é enganada com facilidade pelos discursos. Já não se deixa iludir com a aparência das performances. É crescentemente consciente de seu poder eleitoral numa democracia e faz valer esse poder na hora de recolocar - ou excluir - os políticos nos espaços de representação. Estes, doravante, estarão permanentemente sob mira; mapeados por observação crítica; e serão cobrados diuturnamente de seus atos e pronunciamentos. Os programas inteligentes de monitoramento do comportamento da classe política, pela sociedade civil, desenvolvem-se e se aperfeiçoam a cada dia, projetando, pela primeira vez na história - graças às tecnologias disponíveis -, a possibilidade de um controle cotidiano e efetivo dos eleitores sobre os seus representantes. 

 

Anatomia do fim

 

É toda essa grande e incessante transformação que desnorteia os políticos “do passado” ainda sobreviventes, que se sentem ameaçados em seus costumeiros e cômodos “redutos”, já desconfiados - a contragosto - de sua inexorável obsolescência. Acusam as redes sociais de fake news, como se fake não fossem as suas próprias trajetórias, consuetudinariamente construídas sobre ilicitudes e mentiras - com a cumplicidade (também ela enganadora) da grande mídia. 

 

Sim, os valores e as estruturas da “velha política” estão a desmoronar ante o desabrochar de uma inédita complexidade societária que se move. Pelo andar da carruagem, a democracia contemporânea, do Século XXI, exigirá novos tipos de políticos, de mentalidade mais republicana e menos corporativa, afinados e comprometidos com o “interesse geral” (com as aspirações do conjunto da coletividade), sem os subterfúgios, as tergiversações e as esparrelas de costume. 

 

Exercício transparente

 

As tecnologias de uso comum e massificado imporão - numa perspectiva otimista (mas possível!) - uma maior transparência no exercício da política. A hegemonia, nesse novo contexto, já não derivará do arcaico recurso à ideologia (em si mesma uma fake news), mas da comprovada capacidade de inovação do gestor (ou do legislador) na solução eficaz dos problemas objetivos da vida em sociedade, segundo a expectativa da maioria da população - doravante mais palpável e ativa na imposição de sua soberania. Talvez somente então poderá ser proclamada, finalmente, no Brasil, a República. Somente então.

 

 

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