Luxo no lixo: comércio de couros alimenta os desmatamentos e eleva nível de violações no Pará

Ausência de rastreabilidade e fiscalização eficaz permite que couro de áreas desmatadas ilegalmente no Estados vire artigo de grife na Europa.

01/07/2025, 08:10
Luxo no lixo: comércio de couros alimenta os desmatamentos e eleva nível de violações no Pará
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esmo com crescimento nas exportações - que somaram US$ 1,26 bilhão em 2024, alta de 12,5% em relação ao ano anterior -, o setor de couro brasileiro convive com uma grave crise de fiscalização e rastreabilidade. Segundo investigação da Ong britânica Earthsight, grande parte da produção ainda é escoada de forma clandestina, com couro bovino originário de áreas desmatadas ilegalmente, inclusive em terras indígenas, sendo "lavado" e exportado sem que sua origem seja devidamente identificada.

Friboi se alinha entre os principais fornecedores de couro para o mercado europeu, onde grifes famosas faturam alto explorando produtos brasileiros que escapam à fiscalização/ Fotos: Divulgação.

O estudo “O preço oculto do luxo”, denuncia como empresas de moda de prestígio internacional - entre elas Coach, Fendi, Hugo Boss e Louis Vuitton - compram couro processado por curtumes italianos que, por sua vez, adquirem a matéria-prima de frigoríficos brasileiros com histórico de violações ambientais.

Entre os principais fornecedores está a Frigol, um dos maiores matadouros do País, cuja planta no Pará é acusada de comprar gado criado ilegalmente em áreas embargadas, como a Terra Indígena Apyterewa, território do povo Parakanã.

Rastreabilidade ausente

A chamada Lei do Couro (Lei 4.888/65) no Brasil proíbe o uso do termo para produtos que não sejam de origem animal, mas não regula com rigor a rastreabilidade da cadeia produtiva. A competência de fiscalização recai sobre o Ibama e também sobre entidades do setor, como o Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil, que organiza ações pontuais do "Blitz Lei do Couro".

No entanto, essas iniciativas têm alcance limitado frente à complexidade da cadeia produtiva e à falta de um sistema público eficaz de rastreamento do couro desde a origem do gado até o consumidor final.

“A fiscalização enfrenta obstáculos imensos, entre eles a ausência de identificação individual do gado e a prática comum de ‘esquentar’ animais criados ilegalmente, que são transferidos para fazendas regularizadas antes do abate”, alerta Camila Trigueiro de Lima, do Imazon. “É urgente a criação de regras mais claras, punições efetivas para frigoríficos e um sistema nacional robusto de rastreabilidade”, complementa.

Legislação frágil

A mesma Lei do Couro (Lei 4.888/65), embora represente um marco importante para a transparência e a correta identificação de produtos de origem animal no Brasil, ainda enfrenta diversas limitações em sua aplicação prática. Infrações são recorrentes, com estabelecimentos utilizando indevidamente o termo “couro” para descrever materiais sintéticos ou informando incorretamente a composição dos produtos.

Parte desse problema decorre do desconhecimento da norma por parte de consumidores e lojistas, o que favorece a perpetuação de práticas irregulares no comércio. A fiscalização também é um ponto sensível: sua efetividade depende de esforços contínuos e estruturados, que nem sempre são suficientes diante da complexidade do mercado. Ainda assim, a lei tem papel fundamental ao promover maior transparência para o consumidor, incentivar o bem-estar animal e fomentar práticas mais sustentáveis no setor coureiro, desde que acompanhada por ações educativas e mecanismos de controle mais robustos.

“Made in Italy”

De acordo com a Earthsight, entre os principais destinos do couro ilegal brasileiro está a Itália - responsável por processar e reembalar o material em curtumes de prestígio como Faeda e Conceria Cristina. Esse couro é posteriormente rotulado como "italiano" e abastece grifes que cobram entre R$ 1.900 e R$ 3.800 por bolsas comercializadas globalmente.

A Ong revelou que o curtume Durlicouros, maior exportador do Pará para a Europa, compra diretamente da Frigol e exportou, entre 2020 e 2023, 14.726 toneladas de couro à Itália. Embora empresas como Chanel, Hugo Boss e Chloé tenham negado o uso de couro brasileiro ou anunciado auditorias internas, o relatório aponta falhas sistêmicas nos mecanismos de certificação utilizados, como o Leather Working Group, que não exige rastreamento até a fazenda de origem.

Contramão da COP30

O escândalo ocorre em um momento simbólico: o Pará será palco da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas este ano. A escolha do Estado, que lidera o ranking nacional de desmatamento vinculado à pecuária, lança luz sobre as contradições do Brasil na agenda ambiental. Só nos últimos 20 anos, uma área quase duas vezes maior que Portugal foi destruída no Pará, segundo a Earthsight.

“O Brasil se comprometeu internacionalmente a acabar com o desmatamento até 2030, mas a realidade mostra uma cadeia produtiva de couro altamente vulnerável à ilegalidade e marcada pela impunidade”, afirmou Rafael Pieroni, coordenador da investigação na América Latina. “É inaceitável que o luxo europeu continue sustentando esse modelo com base em promessas vazias e certificações deficientes”.

Pressão internacional

Com a entrada em vigor prevista para dezembro de 2025, o novo Regulamento de Produtos Livres de Desmatamento da União Europeia deverá impor exigências de rastreabilidade às importações de couro e outras commodities. No entanto, o adiamento da aplicação da lei tem sido criticado como um “presente” para setores que historicamente pressionam por flexibilização, como os curtumes italianos.

“A entidade europeia precisa ser aplicada com rigor e sem mais delongas. O tempo para ajustes acabou. A única forma de garantir que o couro que chega à Europa não esteja manchado por crimes ambientais e violações de direitos humanos é exigir provas documentais da origem de cada pele, desde a fazenda até a vitrine”, conclui Pieroni.

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