A universidade no telhado: de como a farsa e a politicagem ameaçam a instituição no Brasil

A ideologização do conhecimento é uma trapaça que condena toda uma geração a uma inevitável falência, com diploma sem lastro.

Por Alex Fiúza de Mello | Sociólogo, cientista político e ex-reitor da UFPA

26/09/2024 08:00
A universidade no telhado: de como a farsa e a politicagem ameaçam a instituição no Brasil
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arte expressiva da universidade brasileira precisa, urgentemente, descer do telhado  escorregadio das “certezas” em que se encontra para, com os pés firmes no chão, voltar a  mover-se com o desejável fito da dúvida criativa, própria do métier e do habitus acadêmico;  uma atitude sempre condicionada ao aconselhável distanciamento do observador de seu objeto  de análise, sem cujo “estranhamento” não existe a possibilidade de profícuas descobertas - e,  no caso, da necessária autocrítica face aos contrabandos ideológicos das vãs “convicções”. 


Universidade brasileira entrou em um funil em que a partidarização atropela o conhecimento e causa danos à sociedade/Fotos: Imagens meramente ilustrativas.

 Sim, porque conhecimento científico - com os seus inerentes pré-requisitos - não se confunde com religião ou ideologia. Tem método próprio; lógica intrínseca - e não se guia pela “cegueira” da fé, mas pela “iluminação” da dúvida

 

Apenas visto de longe é que o telhado se oferece à retina numa perspectiva mais dilatada de seus contrastes com a paisagem do entorno, sem o que não adquire caracterização distintiva (identidade específica), ou discernimento inteligível (inteligibilidade significativa). De cima dele, sem o imprescindível e recomendado espaçamento, toda visão carece de uma melhor e mais fecunda angulação, de vez que ausente o stand point adequado para a devida amplitude da observação aconselhada. 

 

As “certezas absolutas”, quando manifestas num ambiente acadêmico, ou são equívocos (reprováveis), ou primitivismo (indesculpável), ou má fé (abominável) - sobretudo se alicerçadas em indisfarçáveis facciosismos ideológicos, travestidos de falsa fidedignidade. No limite, viram “doutrina”, à medida que já antecipam os resultados da “investigação” ao sabor das pré-noções e das crenças, adaptando ou reduzindo a “realidade” às conveniências das suspicazes premissas - e não o reverso, submetendo-se as hipóteses ao confronto dos fatos. 

 

A ideologização do conhecimento e a sua afirmação como “verdade inconteste” (ou “pensamento único”) é o maior desserviço que uma instituição universitária pode fazer à sociedade, que a sustenta. Neste caso, trata-se de um engodo; de uma cilada; de uma enorme trapaça, a condenar à inutilidade toda uma geração de jovens que, ali ingressos, candidatos ao progresso cognitivo e à autonomia intelectual, terão sido simplesmente reduzidos - sob o azáfama da ditadura do dogma - ao papel de meros (e eunucos) acólitos de ardilosas seitas, restando-lhes, ao final da trajetória, nada mais que falsos diplomas de papel sem lastro,  enrolados por fitas de brilho fictício - e uma provável incapacidade profissional. 

 

Arrogância insustentável

 

Ao negar-se à dúvida, à investigação isenta, ao pluralismo de ideias, à convivência civilizada dos  contrários - enfim, à autêntica e genuína dialética do conhecimento -, a Universidade desliza,  perigosamente, no próprio telhado de vidro em que se colocou, acometida por “vertigem” súbita, advinda da “falta de ar”, privativa de quem se encontra nas incautas “alturas” da insustentável arrogância, desprovida de equipamento intelectual adequado à ambientação de  nível superior, ao que é recomendada. 

 

Urgentemente, de modo igual, a universidade brasileira precisa se engajar nos prementes e  árduos enfrentamentos do desenvolvimento nacional - únicos e singulares em sua  complexidade e substância -, não se eximindo de colaborar com os desafios da inovação (tanto no setor público, quanto no da iniciativa privada) e superando, de uma vez por todas, a fantasmagoria de que tudo é “privatização”, como se o conhecimento colocado à serviço da  solução efetiva dos problemas que afligem a sociedade e que obstaculizam os avanços  econômicos fosse uma capitulação imperdoável aos “malditos” e “gananciosos” imperativos do  capital - o “diabo” sob a forma de classe social.  

 

Um mundo paralelo

 

Esquivam-se, os inautênticos “progressistas”, de admitir que nenhuma instituição histórica pode sobreviver num mundo paralelo ou numa “bolha” imaginária, impermeável às naturais contradições das conjunturas e das épocas, como se estivesse numa “ilha da fantasia”, voltada exclusivamente para dentro de si, alienada da inescapável historicidade de vínculo e apartada da intransponível realidade de inserção. Olvidam-se, outrossim, de reconhecer - talvez para não  “despertar” os mais ingênuos - que grandes universidades, como a alemã e a francesa, sempre  lideraram as revoluções científicas e tecnológicas em seus países (e no mundo) em parceria com  a iniciativa privada (!), nem por isso perdendo o caráter público de sua razão social e patrimonial,  mas afirmando-o e legitimando-o na justa medida de sua eficiente e estratégica utilidade, demonstrada perante as respectivas pátrias por meio dos resultados palpáveis de suas atuações. 

 

Legado sob ameaça

 

A universidade brasileira, de longas lutas e heroicos sacrifícios, não pode perder todo esse majestoso legado por injunções obscurantistas de ocasião. Não deve permitir que as artimanhas dos arrivistas de plantão, que se contrapõem ao restante sadio do tecido acadêmico, imponham-se ao conjunto da instituição como falsos axiomas, de tóxicos e lesivos efeitos intelectivos, mas de miúda e indefesa sustentação. Pois o desafio do conhecimento - o maior patrimônio da humanidade - exige, impreterivelmente, honestidade intelectual e esforço de isenção (que não é “neutralidade”), ancorados, como fundamento perene, no exercício rigoroso e fiel da ética do mérito e, por tabela, da convicção sobre qualquer outro tipo de inconsequente ou oportunista devaneio. 

 

Ciência não é ilação, achismo ou oportunismo - sempre insidiosos em suas sonegadas (e suspeitas) motivações. Muito menos doutrinação - com sua costumeira (e induzida) imputação de preconceitos pérfidos. Ciência - longe dessas coordenadas cavilosas - é disciplina, esforço, experimento; é observação atenta dos fatos em suas reais (e não imaginárias) conexões de sentido, o que supõe compromisso ético (com a “verdade”) e probidade intelectual - que se negam, terminantemente, aos atalhos menos diligentes da lançadiça enganação. 

 

Trajetória sem atalhos

 

 São caminhos distintos, o da ciência e o da farsa - e de destinos diametralmente opostos, por inteiro. Não há “atalhos” ou “desvios” possíveis - tampouco descanso - na sinuosa e interminável trajetória pela busca incessante da “verdade” - de eloquentes custos e heroicos sacrifícios. Entre um roteiro e outro, movida em seus próprios trilhos, a universidade brasileira terá de transitar ou na direção de um novo ciclo de renovação, mantidas suas valorosas marcas da tradição; ou, perdendo-as, no rumo da inevitável e fatal obsolescência - inviabilizando-se, paradoxalmente, justo no limiar da chamada “Era do Conhecimento”, que demarcará o itinerário civilizatório do novo milênio. 

 

No jogo inescapável da virtù e da fortuna (do mérito e das circunstâncias), não adianta a Academia mirar no que é efêmero e fugaz; isto é, em fatores que não dependem de suas iniciativas e/ou escolhas - conjunturas políticas, governos temporários, financiamentos voláteis -, delegando unicamente à sorte ou acaso o seu rumo e destino - o que representaria uma atitude pouco “científica”. 

 

A melhor aposta sempre será aquela da solidez do mérito, da ciência competente, única virtude capaz de imputar longevidade e legitimidade a uma instituição que, não por acaso - e justo pela excelência do conhecimento abrigado (sempre requisitado!) -, foi capaz de atravessar os séculos em ininterrupto progresso, e sobreviver a todas as intempéries das épocas, com o apoio e o reconhecimento de seu principal e mais decisivo mantenedor e fiador: a sociedade. 

 

O mérito e o embuste

 

É a autenticidade da prova do mérito, e não o embuste da “cola” da tapeação, o único roteiro seguro - e o melhor distintivo - para uma universidade, em qualquer tempo ou lugar.  Ou é assim, ou ela será absolutamente inútil, estéril, tanto para o capitalismo, quanto para o socialismo (seja isso o que for) - ou qualquer outra ficção societária que se projete, com toda a liberdade de pensamento (ou fantasia), desde o presente. 

 

A natureza do fim

 

Definitivamente, a Universidade não é (não pode ser) partido político, igreja ou sindicato. Ela é (deve ser), simplesmente, universidade: uma instituição dedicada (por função social) ao ensino superior e à pesquisa, pautada no mérito e na qualidade do que lhe compete - ao invés de divergentes e descabidos adereços. E assim terá de ser, se quiser remanescer pulsando, rejuvenescendo-se e recriando-se, continuamente, no tempo e no espaço. 


Esta é, aliás, a sua única e verdadeira autonomia a ser incansavelmente buscada, cultivada e preservada - ao contrário de outras impróprias e inadequadas pretensões. Todo o resto é contrabando irracional, armadilha mental, arapuca doutrinária; no limite, um lento suicídio coletivo, a caminho do abismo, eivado por comorbidade doentia e deletéria de absoluta e dissipada irresponsabilidade.

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