“Espírito da COP30” altera a noção do que é certo e errado para os povos da Amazônia

Em Belém, pessoas e instituições pervertem conhecimentos e saberes ancestrais com a introdução de tecnologias fora do lugar.

06/04/2025, 11:00
“Espírito da COP30” altera a noção do que é certo e errado para os povos da Amazônia
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m misto de susto e surpresa - alternado por alguma indignação - vem alterando a noção do que acontece em Belém da COP30 de uns tempos para cá. O circo dos horrores, para alguns observadores, começou com o controverso plantio de “árvores artificiais” - depois, “jardins suspensos” como remendo -, na região da Nova Doca, espantando até quem conhece a Amazônia apenas através de livros e imagens. Mais recentemente, “Dona Preguiça”, do “Catalendas”, passou para a tutela da “Senhora” Inteligência artificial.

Árvores artificiais no cenário da Nova Doca para o evento do clima e programa infanto-juvenil criados artificialmente alteram os humores da internet/Fotos: Divulgação.
Parece que alguma coisa está fora de ordem em Belém.

Na semana passada, quase ao mesmo tempo em que o Instagram foi invadido pela “modinha” de retratos, copiando, com as ferramentas da inteligência artificial, os traços do Estúdio Ghibli, do Japão, a área cultural de Belém que tomou mais um susto. Entenda: o estúdio japonês usa a artesania, com tintas e pincéis longa-metragem produzido e encontrado na Amazônia, para criar suas animações de longa-para o cinema, trabalho que leva anos.

Pois bem. Na segunda-feira, 31, aniversário de 38 anos de fundação das Emissoras Cultura, foi divulgado que o “Catalendas”, um dos maiores sucessos da programação infantil-juvenil da TV Cultura, voltaria a ser organizado em programas feitos por nada mais do que Inteligência artificial.

A novidade foi anunciada com orgulho incontido pelo atual presidente da Funtelpa, o ex-deputado Miro Sanova, do PT, de volta ao cargo. Na entrevista, Miro Sanova disse que os personagens de “Catalendas”, “Dona Preguiça” e “Preguinho”, voltariam ao ar para conduzir pequenos programas para falar do assunto do momento: a COP30.

Nova grita generalizada

O anúncio foi na segunda-feira, 31, à noite, e as chamadas do programa aconteceram no ar no dia seguinte, com as vozes também feitas por inteligência artificial. Foi o suficiente para a internet explodir com postagens indignadas contra o “Catalendas por IA”.

O programa “Catalendas” não é mais produzido pela TV Cultura, mas pode ser conferido no YouTube da emissora. As histórias foram exibidas em 1999 e tiveram 115 episódios em quase 20 anos de programa.

Cada episódio foi conduzido por “Dona Preguiça” que, com seu jeito vovó, contou histórias para “Preguinho”, um travesso e irrequieto macaquinho, quieto e bom ouvinte. Assim, “Dona Preguiça” desfiou lendas amazônicas e lições sobre meio ambiente, em momentos educativos que ensinavam de forma única.

A criação e manipulação dos bonecos foram feitas pelo grupo Teatro de Bonecos em Busto, formado por Aníbal Pacha, Paulo Ricardo, Adriana Cruz e David Matos. A direção geral foi de Roger Paes. Tudo feito de forma artesanal, desde a confecção dos bonecos, passando pela criação das histórias, que envolveu muita pesquisa, e muitas pessoas no trabalho todo, que levou alguns dias de gravação, edição e dublagem.

Foi todo esse trabalho de artesianismo que o presidente da Funtelpa, Miro Sanova, e o diretor da TV Cultural, Marcelo Mendes, acharam de bom tom jogar para o alto e transformar em meros bytes da Inteligência artificial.

História para guardar

A jornalista Adelaide Oliveira, presidente da Funtelpa durante oito anos, foi uma das pessoas que falou contra o uso de IA no “Catalendas”. “Um programa feito por gente. Ou melhor, vagalumes. Um programa único, que só uma emissora pública poderia fazer e a TV Cultura do Pará fez brilhantemente. Audiovisual artesanal que vai na contramão do uso da inteligência artificial. Aqui, o tempo é outro. É floresta, rio, encantados. Um trabalho coletivo e grandioso. A tecnologia só é bem-vinda quando potencializa a criação, do contrário, é apagamento, afronta à inteligência humana. O 'Catalendas' foi o primeiro programa produzido em HD pela TV Cultura: 14 episódios em 2013. Tenho muita honra de fazer parte dessa história”, escreveu.

Uma carga de engano

O publicitário Kadu Alvorada, paraense que mora e trabalha em São Paulo, disse que está muito triste com essa possibilidade de ter as “Catalendas” em IA, porque, para ele, a cara do programa sempre foi uma manipulação dos fantoches. "Era todo aquele imaginário que fazia as crianças, eu, inclusive, se encantarem com o que viam. Mas, querem criar tudo aquilo por IA, com todos os estereótipos da IA? Eu juro que queria comemorar a volta das 'Catalendas', mas, dessa forma, para mim, é só decepção", lamenta.

Para o ator e manipulador de bonecos Paulo Ricardo, "É bom dizer que o grupo In Bust de Bonecos nada tem a ver com isso. Estive em todos os episódios feitos e gravados com bonecos. Ficamos também muito chocados".

Catalendas e filhotes

Nas quase duas décadas em que as “Catalendas” estiveram no ar rendeu, além dos programas, várias esquetes de conscientização ambiental nos intervalos da programação da TV Cultural. Foi tema de TCC de alguns estudantes e de tese de mestrado, que se tornou livro. Também foi lançado em DVD e em uma edição de livro que contava a história do programa. Por um tempo, virou parque de diversão na Estação das Docas, onde as crianças interagiam com os personagens do programa.

Em 2024, o grupo In Bust perdeu David Matos, que faleceu em consequência de problemas com o diabetes. E com ele se foi o “Preguinho”, que ele manipulava e dublava com maestria.

Ainda há esperança

Ainda que todos os fãs de “Catalendas” - e eles são muitos - ainda estejam em suspense, talvez a gritaria da internet tenha surtido efeito mais uma vez. Nos últimos tempos, no Pará e em Belém, os assuntos polêmicos parecem que são mais bem resolvidos pelas redes sociais.

Depois de dois dias de intensas críticas, a reportagem sobre o “Catalendas” por IA não está mais no site do Portal Cultura, nem no Instagram da Funtelpa. Sumiu. Desapareceu. Quem sabe se na semana em que o Pará virou tema de chacota nacional por conta das “árvores falsas” na Nova Doca, o governo do Estado não prefere evitar um desgaste...

Papo Reto

·A composição do diretoria do Sindicato dos Médicos do Pará aponta dois detalhes no mínimo curiosos: são diretores de Imprensa, Divulgação e Assuntos Sociais os médicos Eduardo Amoras e Wilson Niwa (foto) .

·Amoras ocupam carga no Hospital da Fundação Santa Casa, presidida pelo médico Bruno Carmona; Niwa é o mesmo da Unimed Belém.

·Trocando em miúdos, é a mesma coisa que colocar um sindicato sob a influência dos hospitais - no caso, o da Santa Casa e os da Unimed Belém. Simples assim, dá para entender?

·O ex-defensor Público Geral do Pará João Paulo Lédo entrou na disputa da vaga ao cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado pelo quinto constitucional da OAB.

·Os dois dias de mobilização da Polícia Civil do Pará não renderam o resultado esperado junto ao governo do Pará. Para os policiais, a instituição segue desvalorizada em seu trabalho.

·Nesta segunda-feira, 7, a mobilização segue, agora para em frente à Casa Civil do Governo, no bairro do Marco, a partir das 8 horas.

·O MP do Pará e o Comitê Permanente da América Latina para a Prevenção do Crime promovem amanhã, no Teatro Maria Sylvia Nunes, Estação das Docas, a Conferência de Alto Nível sobre Segurança Humana e Justiça Climática, voltada para a COP.

·O evento, por certo, não terá a participação de policiais civis.

·Em ano de COP30, a degradação florestal na Amazônia cresceu 482% - equivalente a 33,8 mil km² - em relação ao ciclo de desmatamento anterior, no primeiro trimestre do ano, segundo o Imazon.

· O Pará lidera o ranking, concentrando 75% da área degradada registrada em fevereiro.

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