São Paulo, 05 - O presidente paraguaio Santiago Peña
afirmou nesta sexta-feira, dia 4, que a espionagem da Agência Brasileira de
Inteligência (Abin) contra autoridades de seu país "reabre velhas
feridas" e remonta à guerra do Paraguai (1864-1870), encerrada há 150
anos.
No conflito, a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) derrotou o
Paraguai do marechal Francisco Solano López, levando a uma massacre de mais da
metade da população do país vizinho, com cerca de 280 mil baixas - grande parte
civis, crianças, mulheres e idosos.
O país seria dizimado até a morte do ditador Solano López, e a atual sede do
governo, o Palácio de López em Assunção, seria invadida, saqueada e tomada pelo
Exército imperial brasileiro. Do lado dos aliados, houve cerca de 120 mil
mortes, o conflito mais sangrento da América Latina.
"O Paraguai tem uma história muito dura na região. Em um momento da nossa
história, tivemos que enfrentar uma guerra de extermínio como a guerra da
Tríplice Aliança com três irmãos, Uruguai, Argentina e Brasil, mas
principalmente liderada pelo Brasil. E depois da guerra o Brasil permaneceu em
território paraguaio quase uma década", lembrou Peña. "Essas são
feridas que estamos buscando curar, e esse episódio, infelizmente, só reabre
essas velhas feridas quando o que queremos deixar para trás é essa história de
ódio e ressentimento, que vinha principalmente de fora em relação ao Paraguai.
Infelizmente, hoje percebemos que esses sentimentos ainda existem."
Ele tratou o caso de espionagem, confirmado pelo governo brasileiro, como uma
"notícia desagradável". Peña falou pela primeira vez do caso em
público nesta sexta, em duas ocasiões - uma entrevista à rádio Mitre, da
Argentina, e durante cerimônia pública de entrega de casas populares, em
Limpio.
Peña disse que se preocupava com operações de espionagem da China, mas foi
surpreendido pelas atividades de inteligência de um "vizinho". Ele
quer saber qual foi o alcance e o resultado da operação.
O presidente paraguaio disse que a questão é grave e ultrapassa a relação dele
com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele relatou não ter conversado
ainda com o petista sobre o assunto. Mas reiterou o pedido de explicações
detalhadas e revelou ter aberto uma investigação cibernética interna.
"Temos uma posição de país. Vemos isso com tremenda preocupação, é claro,
porque não é consistente com o tipo de relacionamento que queremos propor.
Queremos propor uma relação de amizade, de parceiros e amigos que nos permita
realmente construir um Mercosul mais forte. Infelizmente, chegamos a esse
impasse. Tomamos medidas? muito firmes", disse o presidente paraguaio.
Penã disse que tem "excelente" relacionamento pessoal com Lula, mas
que esse é um "problema de Estado". Desde que a espionagem da Abin
sobre as negociações relacionadas à Itaipu Binacional veio a público, o governo
Lula tentou se desvencilhar da operação.
Em nota, o Itamaraty reconheceu que houve uma ordem para executá-la no governo
do ex-presidente Jair Bolsonaro e alegou que ela vigorou entre junho de 2022 e
março de 2023. Segundo a chancelaria brasileira, Lula determinou a suspensão
quando tomou conhecimento dela, há dois anos, quando o atual diretor-geral da
Abin, Luiz Fernando Corrêa, ainda atuava como interino.
Governo lamenta o caso
Nesta quinta-feira, a secretária de América Latina e Caribe do Itamaraty,
embaixadora Gisela Padovan reiterou que o governo "lamenta
profundamente" a ocorrência da espionagem.
"Houve um programa iniciado no governo passado e encerrado neste governo.
E realmente não nos passaria pela cabeça espionar um país amigo. As
instituições envolvidas estão fazendo um processo interno de averiguação,
inclusive do lamentável vazamento à imprensa. Não deveria ter ocorrido, porque
a coisas que são feitas, mas não são para serem publicadas, por razões óbvias.
Processos de investigação não deveriam estar na imprensa", afirmou a
secretária. "Estamos trabalhando com as nossas contrapartes paraguaias
para que isso não empane uma relação que é tão vigorosa, tão boa, tão densa
como a nossa relação com o Paraguai."
O governo paraguaio já havia colocado três ministros para tratar do caso em
público. O embaixador brasileiro em Assunção, José Marcondes de Carvalho, foi
convocado a comparecer à chancelaria do país para receber um pedido formal de
explicações detalhadas, um constrangimento diplomático.
Também nesta quinta-feira, dia 3, o chanceler Rubén Ramírez Lezcano recebeu a
visita do embaixador paraguaio em Brasília, Juan Ángel Delgadillo, convocado
para consultas em Assunção, num gesto de repúdio diplomático.
Segundo o Ministério das Relações Exteriores do Paraguai, o embaixador deu
detalhes sobre a operação de inteligência realizada pela Abin e sobre a
repercussão do caso. A diplomacia paraguaia segue monitorando o assunto.
A operação veio a público após o portal UOL noticiar o teor do depoimento de um
servidor da Abin que relatou à Polícia Federal a existência da operação, dentro
da investigação sobre atividades paralelas com viés de perseguição política na
agência, durante o governo de Bolsonaro.
Após o caso de espionagem, Peña determinou a suspensão das negociações do Anexo
C do Tratado de Itaipu, que passa por uma revisão após 50 anos.
OEA
O caso da espionagem da Abin sobre a negociação de Itaipu é o segundo choque
diplomático da gestão Lula com o Paraguai, em menos de um mês. Na entrevista à
rádio de Buenos Aires, Peña também tratou do primeiro, a falta de apoio do
Brasil ao chanceler paraguaio para assumir o comando da Organização dos Estados
Americanos (OEA).
Como o Estadão mostrou em detalhes, Lula e presidentes de esquerda da região
perceberam que Lezcano se movimentava para receber o apoio do presidente
americano Donald Trump e decidiram em conjunto referendar a candidatura de
Albert Ramdin, chanceler do Suriname - ele seria eleito por aclamação na OEA,
após Assunção retirar a candidatura paraguaia.
"Infelizmente a ideologia e o preconceito ideológico muitas vezes, e neste
caso em particular, levaram muitos países, incluindo países da região, que
inicialmente haviam expressado seu apoio à candidatura do Paraguai, finalmente,
devido à pressão de alguns países, eles reverteram seu voto e se inclinaram por
Ramdin, do Suriname", queixou-se Peña.
Fonte: Estadão conteúdo
Foto: José Cruz/ Agência Brasil