Por Olavo Dutra | Colaboradores
As cirurgias oftalmológicas de catarata e glaucoma costumam ser feitas na faixa etária a partir de 40 anos para o glaucoma, e 60 para a catarata, faixas de idade em que essas doenças tendem a ter um maior número de casos. Há, ainda, os casos congênitos, ou seja, crianças já nascem com a doença, ou casos em que a doença se manifesta na infância e na primeira fase da juventude. Mas esses casos não são a regra, e sim exceções. Menos no município de Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém, onde a exceção tem virado regra, com um alto - e estranho - número de casos dessas cirurgias em pessoas jovens, pagas com recursos federais do SUS, por se tratarem de procedimentos de alta complexidade.
Dinheiro na conta
Os dados contraditórios apontam para fraudes praticadas por dois hospitais de Ananindeua em relação a esses recursos. Apenas um deles, o Hospital Modelo, recebeu quase R$ 4 milhões do SUS somente no ano de 2021. Desse montante, mais da metade, R$ 2.294.759,97, foram dedicados somente para cirurgias oftalmológicas e, invertendo a lógica, a maioria delas em pacientes jovens.
Especificamente para cirurgias de glaucoma e catarata, o Hospital Modelo recebeu do SUS em 2021 mais de R$ 1,5 milhão, na cifra exata de R$ 1.529.084,85, de acordo com o extrato do SIA/SUS, de repasses do governo federal para procedimentos realizados.
Tudo estaria bem com os recebimentos se não fosse o fato do excessivo número de cirurgias de “facoemulsificação com implante de lente intraocular”, a cirurgia de catarata, e “trabeculectomia”, que é a cirurgia de glaucoma, incluir também um número expressivo desses dois procedimentos em pacientes adultos jovens, um público que, pela literatura médica, não costuma ter glaucoma e catarata tão cedo.
E nem precisava
Já entre os demais atendimentos oftalmológicos que consomem os outros R$ 700 mil em recursos repassados naquele ano, todos de alto custo, aparecem cirurgias de retina e tomografias - procedimentos tecnicamente chamados de “tratamento de fotocoagulação a laser” e exame de tomografia de coerência óptica (OCT), porém, com todos os pedidos sem o devido laudo de comprovação da real necessidade e indicação, na forma como recomenda o Protocolo de Solicitação emitido em nota técnica elaborada e encaminhada a todos os hospitais conveniados ao SUS pelo Serviço de Regulação da própria Secretaria de Saúde de Ananindeua.
Hospital “dois em um”
Os fatos relatados na denúncia ocorrem corriqueiramente na cidade por meio da atuação de dois hospitais privados conveniados ao SUS. Um deles - o Hospital Modelo de Ananindeua, localizado na Cidade Nova VII e que pertence ao hoje deputado estadual Erick da Costa Monteiro, do PSDB, é o nome preenchido nas guias. Porém, na prática, os supostos procedimentos oftalmológicos são realizados em outro prédio, o do Hospital de Olhos de Ananindeua, que fica logo na esquina da mesma rua, a cerca de 500 metros do primeiro.
Um terceiro hospital também aparece como realizador de procedimentos oftalmológicos para o SUS, mas, em números bem menores. Trata-se do Hospital Oftalmológico do Pará, que tem como administradora a empresária Gilene Mendes, que não é médica, mas é pessoa da estrita confiança do ex-prefeito da cidade, Manoel Pioneiro, do PSDB. Gilene, inclusive, foi oficialmente chefe de gabinete de Pioneiro na Prefeitura de Ananindeua, sendo que no último mandato do prefeito ela saiu em 2016, a pedido, para se dedicar somente aos negócios do então prefeito.
“Muito estranho”
Outro fato no delicado bojo dos hospitais ligados aos políticos, mas que só os órgãos fiscalizadores e a Polícia Federal acharam muito estranho, é que, no Hospital Modelo, todos os procedimentos foram solicitados pelo mesmo médico, o oftalmologista Carlos Augusto Alves. E sempre da mesma forma, alternando entre duas repetitivas “justificativas” de trauma ocular. O modo de atuação é parecido no Hopa, onde todos os procedimentos são assinados por um mesmo médico, o oftalmologista João Marcos Nascimento, e também sem a devida justificativa exigida pelas regras do SUS.
Justiça sempre “às cegas”
O detalhamento do modus operandi da fraude começara a ser denunciados há mais de um ano pelo médico Wirley de Barros, que era auditor do sistema de regulação da Secretaria de Saúde de Ananindeua (Sesau) e começou a estranhar a faixa etária dos pacientes e, ao aprofundar as auditorias, deparou-se com as guias de solicitação dos procedimentos emitidas com os campos de datas das consultas em branco e sempre assinadas pelos mesmos médicos.
Abrindo o jogo
Inicialmente, ele relatou o caso ao Ministério Público do Pará, por meio da Procuradoria do Município de Ananindeua. Mas, como envolve recursos federais de alta complexidade do SUS, o médico denunciou também o caso ao Ministério Público Federal, diretamente ao procurador Bruno Valente, titular da Procuradoria da República no Pará.
"Ele abriu um procedimento e chegou a fazer uma averiguação, informando ao denunciante que enviou um 'técnico em transporte' ao endereço de 20 supostos pacientes e que estes haviam confirmado a realização das cirurgias. Questionei a forma e qualificação do técnico em fazer isso e sugere uma busca e apreensão” -, relatou Wirley à reportagem.
A busca e apreensão não foi divulgada à época, mas foi realizada em março deste ano, gerando a digitalização de vários relatórios, dos quais, até hoje, não se tem conhecimento.
Diante da falta de andamento, o denunciante procurou, em maio deste ano, a Polícia Federal, e fez a denúncia, instância que, pelo silêncio, também parece não ter se interessado pelo que foi apresentado.
“Bastante graves”
Procurado pela reportagem por ter sido quem havia dado algum sinal de que investigaria a situação, o procurador Bruno Valente informou, por meio de nota, que “o MPF constatou que não havia recursos de jurisdição federal envolvidos”. A nota diz ainda que “O MPF oficiou ao Ministério da Saúde e teve a confirmação de que foram recursos do próprio município de Ananindeua. Por isso, não foi possível o MPF atuar, embora o MPF concorde que realmente a denúncia trata de fatos bastante graves”, diz a nota do MPF.
A reportagem não obteve retorno da Procuradoria de Ananindeua.