urante oito anos, entre 2015 e 2023, a matemática Thelma Krug, 74, atuou em um dos cargos de maior visibilidade na ciência mundial, respondendo pela vice-presidência do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) ligado à Organização das Nações Unidas.

Há dois anos, a brasileira foi uma das finalistas na eleição para a presidência do IPCC, perdendo a disputa para o britânico Jim Skea. Entretanto, seu status como uma das pesquisadoras mais respeitadas internacionalmente na área de mudanças climáticas lhe assegurou a presidência do Sistema de Observações Globais para o Clima (GCOS).
Krug será uma presença certa em Belém do Pará para a 30ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP30), a primeira a ser realizada no bioma amazônico. Em São Paulo, durante o evento “Perspectivas para a COP30”, promovido pela Unesp, a cientista falou sobre a importância de manter de pé as balizas diplomáticas construídas no Acordo de Paris, dez anos atrás.
Ela afirma que o desafio será preservar o status de prioridade atribuído às mudanças climáticas pelos signatários do pacto global, apesar da tensão bélica que se espraia mundo afora.
“São duas guerras: uma é uma bélica, a qual pode ser travada com armamentos; e a outra é uma crise climática em que as armas da defesa, bélicas, não vão combater”, diz Thelma Krug.
Confira a entrevista na íntegra
O principal desafio para esta COP30 no Brasil será no campo da diplomacia?
Será um grande desafio. E não digo para a COP, mas para o Acordo de Paris. O Acordo de Paris já estava fragilizado antes de os Estados Unidos saírem. Muito possivelmente porque as regras ficaram um pouco soltas, então as ambições vão sendo colocadas… Enfim, cada país diz que está fazendo muito e, no final das contas, as avaliações não estão mostrando isso. Não estamos vendo resultados práticos. Houve um enfraquecimento ao longo desses dez anos de Acordo de Paris.
Acho que se proporcionou liberdade para os países apresentarem suas ambições para a redução das emissões, de acordo com as suas circunstâncias nacionais, suas capacidades… Teria sido melhor se pudéssemos atribuir metas quantitativas definidas aos países desenvolvidos. Os Estados Unidos iam sair do acordo de qualquer jeito, com ou sem metas. Mas, pelo menos a gente teria algum indicativo se estaríamos seguindo uma trajetória que nos leve realmente a limitar o aumento da temperatura média dentro dos valores que o Acordo de Paris coloca, bem menos de 2º C, enquanto a gente persegue chegar em 1,5º C.
O pesquisador Philip Fearnside, do Inpa, alertou, no final do ano passado, que o Brasil seria um dos mais impactados pelas mudanças climáticas, de norte a sul.
Em termos de impacto, existe uma diferença muito grande entre esses dois limites de temperatura (1,5º C e 2ºC). Os riscos são muito maiores para tudo: para os ecossistemas, para as pessoas, para a vida mesmo. Nessa questão de extremos crescendo em frequência e intensidade no Brasil, Fearnside falou certo. Existe uma avaliação muito pessimista, de que seremos muito impactados por esses eventos climáticos extremos. Já estamos passando por isso. Ainda há muito para a ciência avançar, mas há modelagens robustas que mostram impactos para as diferentes zonas do Brasil. Por exemplo, para o Sul, a gente estima maior quantidade de chuvas, tempestades muito fortes. Na Amazônia a gente está falando de seca, queimadas, dias muito quentes, semiárido. Então, para cada região do Brasil, os modelos estão mostrando diferentes impactos climáticos para um mesmo aumento da temperatura média global. Quanto maior é esse aumento, pior é o cenário que a gente tem, em todas as áreas.
Esses fenômenos mais extremos estão acontecendo antes do que os cientistas esperavam?
Não. Há muito tempo, muito mesmo, o IPCC já vinha fazendo esses alertas. O IPCC, é interessante, faz uma avaliação da literatura existente e se baseia em duas coisas: primeiro, na evidência para determinados tipos de fenômenos; e também na concordância entre as centenas ou milhares de publicações científicas que são avaliadas pelos autores. A partir desses dois fatores o IPCC faz uma qualificação na conclusão que ele tira. Por exemplo, uns anos atrás, havia sim essa ideia de que os eventos climáticos se tornariam mais frequentes, mas tínhamos menos certeza disso. À medida que se obteve mais dados e modelos mais robustos, chega-se a essas conclusões muito mais fortes e robustas.
Um desses casos foi quando o IPCC, recentemente, fez uma associação inequívoca do aquecimento do sistema climático - da atmosfera, do oceano e da biosfera terrestre - às atividades humanas. Ou seja, a influência do ser humano no aquecimento do sistema climático ficou inequívoca, virou um fato. E não era assim. Lá atrás se falava “existe um indício…”. Aí vai melhorando (a modelagem), os dados vão ficando mais robustos, a ciência vai evoluindo, principalmente nessa área em que você vai tendo dados que vão mostrando que essas coisas estão se tornando mesmo uma realidade, dentro daquilo que a gente antecipou lá atrás enquanto cientistas e que mostraram que essas coisas iam acontecer. Mas ninguém ouviu. Ou, se ouviu, o interesse econômico foi muito maior, porque de fato custa muito caro para que essas ações sejam implementadas.
Em um momento em que ocorrem eventos extremos na Europa, na Ásia, na América do Sul, não é contraditório vermos os governantes da Europa falando em armamentos, os Estados Unidos com um governo negacionista, e outras partes do mundo também indo no sentido contrário daquele apontado pelos cientistas em relação às mudanças climáticas?
Olha, o mundo está em um momento muito difícil… O continente europeu foi surpreendido pelo que aconteceu [guerra na Ucrânia]. Jamais se esperaria isso. E, por um lado, eles [europeus] têm razão: já deveriam ter se preparado para que também tivessem a chance de poder defender seu povo, defender sua soberania, e não contar com um aliado… O que está se estimando que será o investimento anual em Defesa é algo da ordem de US$ 3 trilhões. Se falarmos que se pedia apenas US$ 1 trilhão para o clima…
São duas guerras: uma seria uma guerra bélica, que pode ser travada com armamentos. A outra é uma crise climática em que as armas bélicas não vão combater. São duas guerras. Só que uma, eu acho, passou a ter uma importância maior, talvez até para a própria população… Veja o que está acontecendo agora: essas ameaças [do governo Trump] que estão existindo sobre a Groenlândia, sobre o Panamá… São coisas que a gente nunca imaginou que fosse passar. No ano passado, não se aventava que essas loucuras pudessem acontecer, saindo de uma única cabeça doente, que tornam a questão climática bem mais complicada. Antes, já tivemos a covid-19, que havia tirado do clima a prioridade.
A pandemia atrapalhou a evolução do Acordo de Paris?
Lógico que atrapalhou. Houve uma parada grande de investimentos ali em razão da covid. Afetou muitas instituições e o trabalho dos pesquisadores que precisavam sair para fazer trabalho de campo. Bom, saímos da covid, começamos a restabelecer um pouco a preocupação com o clima. E agora vem essa bomba por parte dos Estados Unidos.
Ficou mais difícil agora conseguirmos financiamento para os países. O financiamento pode ser na forma de grants, ou pode ser um outro tipo de loan; um empréstimo que permita que os países possam implementar tecnologias que desejam para si. Não como imposição: “tenho essa porcaria aqui que já não quero mais e vou passar para um país em desenvolvimento”. Saímos dessa fase, eu acredito. Então existe sim [contradição], por isso digo que estamos com duas guerras.
Durante o encontro “Perspectivas para a COP30”, a senhora defendeu o conceito de justiça climática para analisar o desejo da Petrobras por explorar petróleo na região da Margem Equatorial.
Eu não defendi. Eu disse que tenho um conflito pessoal enorme com relação a isso. Porque, enquanto cientista, a gente sabe que, sem a descarbonização, não vamos conseguir limitar o aquecimento nos termos do Acordo de Paris. Isso é um fato. Por outro lado, fico imaginando que aquela região, principalmente na nossa região amazônica, foi esquecida durante toda a sua vida. Aquela população cresceu. A exploração da região já começou de uma maneira muito complexa, na época dos militares. Houve muita dor e tristeza, e nunca se fez planejamento para o desenvolvimento. Vejo a dificuldade com saneamento, uma coisa básica, com água para beber, potável, poxa vida…
A gente tem de pensar nos impactos ambientais, nos impactos econômicos e nos impactos sociais. Gostaria de ter visto um planejamento estratégico de exploração para outras coisas, que não apenas a nossa riqueza [mineral]. As riquezas da Amazônia são enormes, poderia existir uma condição melhor para a população que vive ali. O meu conflito é esse: não quero enquanto cientista, mas fico pensando que proporcionaria empregos e uma condição melhor de vida. Estou querendo aliviar esse meu conflito pensando que, como estão dizendo, faríamos diferente. Mas ainda não ouvi [uma explicação sobre] o que é fazer diferente na exploração.
Fazer diferente do que foi feito até aqui no Brasil?
No Brasil e fora, porque o problema não é só daqui. O problema é que nós estamos na Amazônia. Não sei se existiria essa comoção se não fosse na Amazônia. Eu tenho dúvidas… Tudo foi acontecendo muito tardiamente. Por isso que até dentro das discussões na Convenção do Clima existe um limite: se a gente quiser limitar o aumento da temperatura média global em 1,5º C, tem um limite de quanto globalmente podemos emitir. É como se você falasse “olha, esse aqui é nosso balanço do que resta”. Mas como é que reparto o que resta? Como é que a gente reparte esse filão do que sobra [de emissões globais em potencial] entre 195 países membros? Enquanto país em desenvolvimento, falamos “não tivemos oportunidade de nos desenvolver”. Os países desenvolvidos fizeram tudo o que queriam fazer, estão pagando a conta daquilo que fizeram e, ao mesmo tempo, dizem “a gente chegou primeiro e tem uma maior parte desse filão”. Claro que se os Estados Unidos vão fazer o que estão dizendo, de abrir mais plantas, etc, vão pegar um pedaço razoável desse filão. E o Brasil poderia pegar um pedaço pequeno desse filão, pensando dentro dessa questão da repartição do que resta [do limite de emissões].
Antigamente, a gente não tinha essas considerações ambientais tão fortes. E, claro, na Amazônia a pressão é muito maior, por vários aspectos com os quais eu concordo. A gente teria que ser extremamente cauteloso. É o que falo: nem tudo precisa ser feito como foi feito no passado. As tecnologias vão melhorando e fazendo com que se minimize mais os riscos potenciais.