Xangai, China*
- O ano era 1973 e a mineradora Vale, então a estatal Vale do Rio Doce, faria
algo novo -- e ousado: embarcaria 20.000 toneladas de minério de ferro em uma
viagem de 20.000 quilômetros para a China. Foi uma das primeiras operações de
uma empresa brasileira para o país asiático, e aconteceu antes mesmo do
estabelecimento oficial de relações comerciais entre Brasil e China, firmado em
1974.
"Exportar
minério de ferro para a China era visto como uma transação de alto risco. Mas,
finalmente, a Vale decidiu prosseguir. Nossa primeira exportação de minério de
ferro para a China totalizou 100.000 toneladas, que foram entregues em três
carregamentos", contam Tracy Xie , presidente da Vale China, e Dauter
Oliveira , diretor de desenvolvimento asiático da companhia, à EXAME no
escritório da empresa em Xangai.
O primeiro
carregamento de 20.000 toneladas foi enviado à China em julho de 1973, a partir
do Cais de Atalaia, na cidade de Vitória, no Espírito Santo, e a segunda
remessa de 26.745 toneladas foi enviada em setembro daquele ano.
"As
53.672 toneladas restantes foram entregues em 1974. O volume vendido à China
representou 0,1% de todo o minério de ferro vendido pela Vale em 1973 e
1974", dizem os executivos. "Mas o que importava era o simbolismo.
Com a entrega desses primeiros carregamentos, iniciou-se uma nova era."
De fato, uma
nova era foi iniciada. Nos últimos cinquenta anos, a corrente de comércio, a
soma entre importações e exportações, com a China saiu de 0,2% para 27% de tudo
o que o Brasil transaciona com o mundo. Em 15 de agosto, as relações entre os
países completaram meio século. O desafio é renovar a relação para que ambas as
nações encontrem valor nas trocas.
Um novo passo
pode ser dado em novembro deste ano, quando o presidente chinês, Xi Jinping ,
visitará o Brasil para participar do G20 e para ter reuniões bilaterais com o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva .
Milhares de
chineses embarcarão com destino ao Rio de Janeiro para fazer parte da comitiva
presidencial, segundo apurou EXAME. A grande expectativa é com a possível
adesão do Brasil à Rota da Seda, o projeto de infraestrutura global chinês que
há anos tenta atrair os brasileiros.
A EXAME
partirá da comemoração dos 50 anos dessas relações para publicar a partir desta
segunda-feira, 19, um extenso material sobre a China e sua crescente relação
com o Brasil. Em maio, a reportagem percorreu mais de 2.000 quilômetros no
gigante asiático, visitou diversas cidades e viu, em primeira mão, as
dicotomias de uma nação milenar que se debruça para o futuro.
Com uma
infraestrutura pujante -- como uma malha de trens-bala que trafegam a 300
quilômetros por hora e fazem o trecho de 1.000 quilômetros entre Xangai a
Pequim em pouco mais de três horas --, estradas em ótimas condições, cidades
vibrantes e tecnologia de ponta, a China segue sendo um país que precisa ser
mais bem conhecido pelo Ocidente.
A EXAME
visitou empresas que buscam estar no limite da tecnologia, como a Apollo Go ,
do grupo Baidu, e seus mais de 1.000 carros autônomos que circulam por cidades
chinesas, ou a Aerospace Feipeng , braço civil do conglomerado de defesa chinês
que entregou um café à reportagem em um drone vindo de alguns quilômetros.
Presenciamos a
ambição de algumas -- ainda poucas -- empresas brasileiras atuantes na China,
como a Suzano, cujo centro de tecnologia nas imediações de Xangai explora novos
usos para a celulose, e da Vale, cuja relação com o país asiático tem 51 anos,
como mostra a abertura desta reportagem.
"A China
não é apenas nosso maior mercado, mas também nosso principal fornecedor de
produtos e serviços nas áreas de mineração, infraestrutura e logística",
contam Xie e Oliveira, da Vale. "Temos a honra de ter estabelecido
parcerias vantajosas para todos com muitos dos principais fornecedores
chineses, como XCMG, CRRC, DHHI, KDHI e JinkoSolar."
Mas uma China
mais antiga, como a da Ópera Wu , uma tradição cultural milenar da cidade de
Jinhua, no sul do país, também existe. E convive com o apetite de crescimento
do país.
Nela, há
vilarejos antigos, como o milenar Youbu, com um exuberante café da manhã que
invade as ruelas, e Zhuge Liang , construída por herdeiros do filósofo Zhuge
Liang há mais de 400 anos e que escapou intacta da invasão japonesa na Segunda
Guerra Mundial por causa de sua arquitetura que simula as ondulações naturais
das montanhas.
Essas
histórias serão contadas em um especial da EXAME, a partir desta semana. Os
textos serão assinados pelo editor Luciano Pádua, de Macroeconomia, e Leandro
Fonseca, cujas fotografias estamparão as matérias.
Em 1974,
Brasil e China tiveram uma corrente de comércio, a soma entre importações e
exportações, de 19,4 milhões de dólares.
De nossos
portos, saíram especialmente algodão, açúcar e farejo de soja. A China enviou
produtos químicos e farmacêuticos. Era o início de uma relação comercial --
naquele momento ainda embrionária -- que se tornou extremamente profícua entre
os países nas próximas décadas.
Hoje, os
números e a importância da China para economia nacional são patentes: em 2023,
exportamos 104,3 bilhões de dólares e importamos 53,1 bilhões de dólares para o
gigante asiático.
Ou seja, em 50
anos a corrente comercial entre os países cresceu nominalmente mais de 5.300
vezes .
O saldo
comercial do ano passado foi de 51 bilhões de dólares, segundo o Ministério do
Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) -- mais da metade do
saldo total, recorde, do Brasil ano passado.
Em 15 de
agosto de 1974 , quando os países estabeleceram suas relações diplomáticas,
Brasil e China eram outros.
Por aqui,
vivia-se ainda sob o efeito do "milagre econômico" e o futuro estava
logo ali -- em uma resposta à célebre obra de 1941 do autor judeu-austríaco
Stefan Zweig, "Brasil, o país do futuro". O principal produto que
exportávamos para o mundo era o café -- e para a China, o algodão.
Empresas
brasileiras interessadas em exportar minério de ferro, como a Vale, que tem
presença de 50 anos no país, e outras commodities para a construção do país
asiático tinham dificuldade em encontrar produtos chineses para importar e
manter a relação comercial viva, lembrou Galvão.
Do outro lado
do mundo, as reformas de abertura comercial de Deng Xiaoping ainda não haviam
acontecido, e a China era um país com renda per capita de 315 dólares por ano,
um legítimo representante do então chamado terceiro mundo.
Cinquenta anos
depois, a história se encarregou do destino dos dois países.
A renda per
capita chinesa -- um país de 1,4 bilhão de habitantes -- ultrapassou a
brasileira em 2016, em dólares, segundo dados do Banco Mundial, e o país é hoje
a segunda maior economia global, desafiando a hegemonia dos Estados Unidos.
Por lá, o
futuro não só chegou, como segue sendo estimulado pelo governo: o país investe
6,1% do PIB em infraestrutura, na maior parte recursos públicos, e tenta
dominar as novas fronteiras tecnológicas como inteligência artificial, drones,
carros elétricos e baterias para a transição energética.
No Brasil,
vivemos uma montanha-russa econômica, do milagre econômico à hiperinflação dos
anos 1980 e 1990 até a crise mais recente dos anos 2010, na qual tivemos dois
anos de recessão econômica. No campo social, houve significativa redução da
pobreza nesse período, mas os brasileiros ainda convivem com "voos de
galinha" que constroem e destroem riqueza.
A história até
aqui foi pródiga, em especial para o lado chinês, que promoveu a maior
mobilidade social da história, retirando mais de 600 milhões de habitantes da
pobreza extrema.
Os sucessos
passados, porém, não garantem ganhos futuros, como lembra o embaixador do
Brasil na China, Marcos Galvão. Para seguir crescendo, a China dependerá cada
vez mais do Brasil; e o Brasil, para subir degraus na escada do
desenvolvimento, também dependerá mais e mais da China.
"A
economia muda. Não podemos nos contentar com os êxitos do presente. O êxito
traz inércia, e não podemos cair nela. O Brasil precisa diversificar a pauta de
exportações, aumentar o nível de agregação nos produtos exportados", disse
em entrevista à EXAME em maio.
Para Galvão,
tanto os chineses como os brasileiros são "práticos e realistas".
"Sabemos
o que temos a oferecer um ao outro", afirmou. "A China sabe que pode
confiar no Brasil como fornecedor. Tanto sabe que deixou que o Brasil assumisse
a posição de seu principal fornecedor de produtos agrícolas."
O desafio está
em ampliar a pauta de exportações e importações, além de adicionar cada vez
mais valor na venda de produtos agrícolas e mineiras. Vale para os próximos
cinco, mas também para os próximos 50 anos.
Fonte: EXAME (Equipe
viajou a convite do China Media Group)
Foto: Reprodução