O conflito por controle de territórios e pelo uso da terra na Amazônia Legal é o principal eixo que estrutura a geração da violência na região atualmente. A conclusão é do estudo Cartografia das Violências na Amazônia, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em parceria com o Instituto Mãe Crioula (IMC), em sua terceira edição.
O relatório aponta que, apesar da redução na taxa de desmatamento, ainda figuram no ranking das cidades mais desmatadas Altamira (PA), São Félix do Xingu (PA), Porto Velho (RO), Lábrea (AM), Novo Progresso (PA), Itaituba (PA), Colniza (MT), Apuí (AM), Pacajá (PA) e Novo Repartimento (PA). Sete delas constam no ranking das 100 cidades mais violentas da Amazônia, e nove estão no último relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que documenta conflitos fundiários.
“Essa sobreposição demonstra o quanto o controle do território e o uso da terra são hoje fenômenos que estruturam a produção de violência e de criminalidade na região amazônica, tanto do ponto de vista dos ilícitos ambientais, como o desmatamento e o garimpo ilegal de ouro, quanto o tráfico de drogas, que tem potencializado a questão da violência letal na região”, explicou o coordenador de projetos do Fórum, David Marques, em entrevista à Agência Brasil.
“Assim como os conflitos fundiários, relacionados à regularização da posse da terra, que também historicamente existem na região e têm se notabilizado pela produção da violência, incluindo a violência letal”, apontou. O levantamento de cadastro de propriedades rurais apontou que mais de 20 mil imóveis estão localizados em terras indígenas (TIs) ou áreas de proteção ambiental. Há sobreposição de propriedades em TIs em 8.610 imóveis rurais. Em áreas de conservação ambiental, há 11,8 mil propriedades registradas.
Apesar do registro de queda nos últimos anos, a região permanece com altas taxas de mortes violentas. Em 2023, houve 8.603 mortes violentas intencionais (homicídios dolosos, latrocínios, mortes decorrentes de intervenção policial e mortes de policiais) na Amazônia Legal, uma taxa de 32,3 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes, 41,5% maior do que a taxa brasileira, de 22,8 mortes para cada 100 mil habitantes.
Considerando o triênio 2021-2023, 445 dos 772 municípios tiveram taxas de mortes violentas intencionais (MVI) mais elevadas do que as da média do país. Tais cidades concentram 66,8% da população da região e 83,7% de todos os assassinatos. Ainda que o levantamento aponte a redução recente da violência na região, o fórum avalia que o quadro de violência continua alarmante.
O relatório apresenta os dados da violência letal na região nos últimos anos: entre 2021 e 2022, a queda foi de 1,1%; entre 2022 e 2023, redução de 5,1%; e no período 2021 a 2023 a redução chegou a 6,2%, acima da média nacional, que teve redução de 4,6% no período. Foram analisados dados dos nove estados da Amazônia Legal - Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão -, composta por 772 municípios. A análise busca compreender as conexões entre violência, crimes ambientais e o crime organizado na região.
Monopólio de facções
A redução da violência letal teve influência do estabelecimento de monopólios de atividades criminosas, segundo avaliação do FBSP, e de uma estabilização nas relações entre as facções na maior parte da região. As facções criminosas estão presentes em 260 municípios, com predominância de membros do Comando Vermelho. O número supera as 178 cidades com presença de facções na edição do estudo em 2023.
“Conseguimos identificar a presença de facções em mais municípios do que tinha no levantamento anterior, e também cresceu a proporção desses municípios que são controlados por apenas um grupo. Ou seja, quando você tem territórios controlados por apenas um grupo, a tendência é que se reduza a intensidade do conflito e, portanto, a violência letal”, apontou David.
Entre as 260 cidades com atividades de facções, 175 são dominadas por um único grupo criminoso – em 129, essa hegemonia pertence ao Comando Vermelho (CV); em 28, ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Em 85 dessas 260 cidades verificam-se disputas ou coexistência entre dois grupos ou mais.
O relatório indica que a ação das facções tem papel central não apenas em função da dinâmica do narcotráfico, mas em relação ao avanço do desmatamento, de outros crimes ambientais e com disputas fundiárias. O diretor-presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima, ressalta que o conflito pela terra na área é atualmente regulado pelo crime.
“Esse controle se dá por meio de cadeias produtivas, entre elas a criação do gado em territórios da União usurpados por grileiros, a exploração ilegal da madeira, a pesca predatória e, principalmente, o garimpo em terras indígenas. Essa regulação do território, que ocorre de forma violenta e operada pelo crime, estrutura e conecta todas as principais atividades criminais da Amazônia Legal”, apontou Lima.
Além da ação das facções criminosas, que é mais recente, existe um histórico de conflitos fundiários na Amazônia Legal que não se pode perder de vista, de acordo com o diretor-presidente do Instituto Mãe Crioula e professor da Universidade Estadual do Pará, Aiala Colares Couto.
“Para que se entendam as dinâmicas criminais na região, há que se levar em consideração que a ação de grileiros, que mais tarde vai redundar em avanço das monoculturas, expansão da fronteira agropecuária e ampliação do garimpo, está inserida na mesma lógica da disputa por rotas de escoamento do narcotráfico. Nesse sentido, é sempre sobre controle territorial armado que estamos falando”, explicou.
Região de fronteira
“A gente tem estruturado essas conexões e sobreposições entre os fenômenos e temos documentado, desde 2020, a intensificação da presença de uma criminalidade organizada de base prisional, essa mais faccional relacionada com o tráfico de drogas, na região, por conta da importância geográfica, e também da conexão da atuação desses grupos com ilícitos ambientais”, contou David Marques sobre os achados do estudo.
Ele ressalta que o problema do crime organizado e das facções é nacional. No entanto, o agravamento da situação na região amazônica, com uma intensidade que não se observava antes, tem relação com essa questão geográfica: a proximidade de fronteira com países produtores de cocaína, que é um mercado altamente lucrativo e importante dentro do funcionamento das organizações criminosas no Brasil.
“Hoje três países são responsáveis pela produção de 99%, quase a totalidade, da cocaína que é consumida no mundo: Colômbia, Peru e Bolívia. Esses três países fazem fronteira com o Brasil na região norte. Isso é um dos grandes diferenciais da região e é o que tem atraído a atenção dessas organizações criminosas” explicou o coordenador do FBSP.
Apesar do cenário de estabilização entre facções em grande parte da região amazônica, David destaca que a situação “é sempre muito dinâmica e esse equilíbrio é sempre muito tênue”. Segundo ele, cabe ao poder público fazer o enfrentamento das organizações criminosas de uma forma qualificada. Os estados do Amapá e Mato Grosso, que tiveram aumento da violência letal nas comparações apresentadas no relatório, investiram, por exemplo, na estratégia da letalidade policial, colocando a polícia militar para entrar em confronto direto com as facções. David avalia que essa é uma resposta equivocada ao problema.
“Isso tem muito pouca efetividade. É com base na investigação que a desarticulação dessas organizações pode ser realizada”, avaliou o especialista, apontando a importância de medidas que envolvem o fortalecimento da investigação criminal e a conexão dos setores da segurança pública, como as polícias, os setores de justiça e outros órgãos.
Além disso, no Mato Grosso, mais especificamente na região de fronteira, objeto de intensa disputa de facções, há o agravamento da violência em decorrência do surgimento de uma dissidência do CV, a chamada Tropa do Castelar. O levantamento revelou que, em alguns dos municípios dominados por essa facção, integrada por criminosos muito jovens e, em média, mais violentos, os indicadores de mortes violentas intencionais aumentaram.
Enfrentamento das facções
O Fórum defende que o enfrentamento a essas organizações criminosas seja uma prioridade não apenas na Amazônia, mas no Brasil como um todo. “Nesse sentido, a gente levantou alguns dados que são promissores para a região amazônica. Quando a gente fala de um enfrentamento mais qualificado, uma das grandes chaves é a investigação financeira, chamada em outros contextos de follow the money. Hoje, no Brasil, a unidade de inteligência financeira é o Coaf”, indicou David.
O órgão analisa movimentações suspeitas e se comunica com as autoridades competentes pela investigação de possíveis ilícitos. O levantamento do FBSP aponta ainda que houve um crescimento relevante na produção dos relatórios de inteligência financeira (RIF) dentro do Coaf. “Entre 2016 e 2023, a produção de RIFs cresceu 101,7% no Brasil, e cresceu 300% em UFs da Amazônia Legal. Isso é um indicativo de que a produção de inteligência financeira na região tem crescido e aumenta o potencial de sucesso das investigações criminais que estão acontecendo nessa região.”
“A nossa hipótese é que esse crescimento de produção de inteligência financeira está associado, como no restante do Brasil, a um crescimento da percepção da importância tanto do tráfico de drogas quanto das facções criminosas no contexto da lavagem de dinheiro. É por meio da lavagem de dinheiro que essas organizações transformam o lucro proveniente dos ilícitos em capital econômico que depois pode ser revertido com impactos em mercados legais, nas próprias instituições e até em poder eleitoral, eventualmente”, disse o coordenador de projetos da entidade.
O estudo evidenciou ainda outro tipo de padrão de violência: aquele que se propaga após a realização de uma grande obra, como uma estrada ou uma hidrelétrica, ou que decorra da execução de projeto de extração de algum bem mineral, o que atrai trabalhadores forasteiros ao local. A entidade avalia que é necessário que haja projetos para mitigar os impactos dessas obras na segurança pública, a exemplo do que existe na área ambiental. Há estudos de impacto socioambiental, mas não se avaliam os impactos na segurança pública, alertou o FBSP.
TI Yanomami
Em Roraima, onde está localizada a Terra Indígena (TI) Yanomami, há queda de violência de uma forma geral. O relatório ressalta que, no estado, há a experiência da Casa de Governo, estrutura criada pelo governo federal para coordenar e monitorar presencialmente a execução do Plano de Desintrusão e de Enfrentamento da Crise Humanitária na Terra Indígena Yanomami.
O FBSP obteve, via Lei de Acesso à Informação (LAI), números oficiais a respeito de equipamentos apreendidos na operação. Foram apreendidas 25 embarcações e duas aeronaves, além de outras 61 embarcações destruídas, bem como 42 pistas de pouso.
Segundo o estudo, membros da facção Primeiro Comando da Capital (PCC) dominaram áreas de garimpo ilegal de ouro, o que agravou de maneira acentuada a violência e as condições de vida da população indígena local, que tem sido denunciadas, especialmente na gestão anterior do governo federal.
Agência Brasil
Foto: Fábio Pozzebom/Ag.Brasil