O Uruguai tem sido um dos maiores obstáculos ao projeto do presidente do
Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, de maior integração e organização política
na América Latina. Com um governo de centro-direita que tem posições destoantes
de Lula em relação ao retorno do ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, a arena
internacional e ao funcionamento do Mercosul (Mercado Comum do Sul), Montevidéu
e Brasília tem se colocado em lados distintos.
O presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, já discordou publicamente do
presidente brasileiro quando Lula convidou Maduro para participar do encontro
de presidentes sul-americanos em Brasília, em maio. Na ocasião, Lula afirmou
que o ditador venezuelano precisava "contar a sua narrativa" e
criticou as sanções econômicas dos Estados Unidos. Após a declaração irrestrita
de Lula em apoio ao regime venezuelano, conhecido pelas diversas violações de
direitos humanos e políticos, Lacalle Pou interviu de forma enfática.
"Fiquei surpreso quando se disse que o que acontece na Venezuela é uma
narrativa. Vocês sabem o que nós pensamos da Venezuela e do governo da
Venezuela", reagiu o uruguaio. "Se há tantos grupos no mundo tentando
mediar a volta da democracia plena na Venezuela, para que haja respeito aos
direitos humanos, para que não haja presos políticos, o pior que podemos fazer
é tapar o sol com um dedo. Vamos dar o nome que tem e vamos ajudar."
Cercado por diversos países que possuem governantes alinhados à esquerda no
espectro político, Montevidéu questiona a agenda de integração de Lula e coloca
em cheque até a participação do Uruguai no Mercosul, enquanto tenta costurar um
acordo de livre comércio com a China, o que não é permitido pelas regras do
bloco.
Mas por que o Uruguai se tornou uma voz dissonante na América Latina?
"Quando Bolsonaro estava no poder, o governo brasileiro sinalizou que
poderia apoiar uma reforma no Mercosul que faria com que o Uruguai pudesse
realizar um acordo de livre comércio com a China e ainda continuar no bloco da
mesma forma, mas com Lula isso não foi mais possível", aponta Diego
Hernandez Nilson, professor de relações internacionais da Universidade da
República, de Montevidéu.
Mercosul e China
O país vizinho adota um discurso de abertura econômica, acusando o Mercosul de
protecionismo. Um acordo de livre comércio com Pequim é contra o regulamento da
entidade, que só aceita negociar um tratado deste tipo em bloco, como o que
está sendo feito com a União Europeia.
Na última reunião do Mercosul, que ocorreu em julho na cidade argentina de
Puerto Iguazu, Montevidéu optou por não assinar o comunicado conjunto do
Mercosul pela quarta vez consecutiva.
Lacalle Pou chegou a pedir que os demais países do Mercosul participassem das
negociações do acordo com Pequim. "O Uruguai tomou uma decisão de avançar
com a China para um acordo de livre-comércio bilateral. Se é junto com a
permanência do Mercosul, melhor", apontou o presidente uruguaio em
coletiva de imprensa.
De acordo com Camilo López Burian, professor de ciência política e relações
internacionais da Universidade da República, a política externa de Lacalle Pou
foi costurada junto com setores do mercado financeiro e do agronegócio, que tem
interesse em um acordo bilateral com a China.
"Lacalle Pou sabe que a política externa não ganha eleições, mas serve
para movimentar o apoio interno, então quando o presidente fala sobre a
importância do acordo com a China, ele está falando com os exportadores, com o
setor agrícola e com importadores que podem comprar barato da China e vender
aqui, o que agrada parte da sua base de governo, no agronegócio", completa
Burian.
Antes de se encontrar com Lula em uma visita oficial do presidente brasileiro a
Montevidéu logo após a posse em janeiro, o presidente uruguaio afirmou que o
país está "aberto para o mundo". Já o presidente brasileiro apontou
que o Mercosul está disponível para negociar um acordo em bloco com a China,
apesar do foco estar em fechar o acordo de livre comércio com a União Europeia,
que é negociado desde 1999.
Contudo, um acordo de livre comércio entre Uruguai e China e uma continuidade
de Montevidéu em seu status atual no Mercosul não é possível para o governo
Lula. Durante a visita oficial do presidente brasileiro a capital uruguaia, o
assessor especial da Presidência e ex-chanceler, Celso Amorim, apontou que o
Mercosul precisa ser preservado.
Entrave
A dificuldade de preservar o lugar do Uruguai no Mercosul e um acordo com
Pequim é o uso da Tarifa Externa Comum (TEC), que o Mercosul adota desde 1995
para padronizar a alíquota de importação de produtos provenientes de fora do
bloco. Ou seja, é uma taxação dos produtos importados de países que não são do
bloco econômico.
Um acordo entre Pequim e Montevidéu faria com que a TEC não fosse cobrada para
produtos chineses no país vizinho. O Uruguai abriria seus mercados aos produtos
fabricados na China em troca de tarifas mais baixas sobre a carne bovina
exportada para Pequim.
Durante o governo de Jair Bolsonaro, Montevidéu e Brasília chegaram a discutir
uma flexibilização da TEC do Mercosul, que poderia possibilitar um acordo do
Uruguai com a China sem prejudicar a relação de Montevidéu com o bloco. A ideia
também era defendida pelo ex-presidente da Argentina Maurício Macri, mas gestão
de seu sucessor, Alberto Fernandez, se posicionou contra a flexibilização.
"Entre 2021 e 2022, houve um avanço na concretização do acordo, mas com
Lula na presidência do Brasil esse acordo fica muito difícil, para mim está
claro que não vai acontecer", avalia Nilson.
Já a possibilidade de um acordo de livre comércio entre China e todos os
membros do Mercosul é considerada remota neste momento, segundo Burian, por
todos os esforços estarem concentrados para um acordo com a União Europeia, que
já se arrasta há mais de 20 anos.
Além disso, nem todos os países do Mercosul possuem relações diplomáticas com a
China, o que dificultaria uma negociação. O Paraguai mantém relações fortes e
históricas com Taiwan, território que a China considera como seu. Pequim não
possuí nenhum contato diplomático com países que reconheçam Taiwan como nação.
Mudança de status
O chanceler uruguaio, Francisco Bustillo, chegou a afirmar durante a última
cúpula do Mercosul que Montevidéu pode considerar a possibilidade de deixar o
Mercosul como Estado fundador para se tornar um Estado associado, que tem menos
responsabilidades e mais liberdade comercial, apesar de não ter poder de voto
nas decisões do bloco.
Para Burian, existe um consenso no sistema político uruguaio que o Mercosul
deve ser melhorado, tanto nos partidos da situação quando na oposição, mas que
a retórica do governo Lacalle Pou é muito mais dura do que de outros
presidentes uruguaios como José Mujica e Tabaré Vázquez, que foram os
antecessores de Lacalle Pou.
"A necessidade de reformas no Mercosul é uma pauta que é antiga no Uruguai
e foi pleiteada por presidentes que vieram antes de Lacalle Pou e tinham
percepções políticas diferentes, mas isso nunca implicou em cortar laços com o
Mercosul, se distanciar dos países da região, por isso que nesse sentido o
discurso de Lacalle Pou é mais inflexível", completou o especialista.
Burian avalia que o Uruguai pode acabar saindo do Mercosul, mas alguns setores
da economia que se beneficiam do bloco poderiam ser prejudicados. "Sempre
há vencedores e sempre há perdedores e o governo uruguaio precisaria discutir
mais isso porque se amanhã o Brasil opta por alguma retaliação contra nós por
uma decisão de abandonar o Mercosul em setores como o açucareiro, por exemplo,
o que a gente faz com as famílias que dependem deste setor?", aponta o
professor.
De acordo com o especialista uruguaio, existem temores sobre uma possível
dependência economia do país caso o acordo seja feito. "Se o Uruguai
tivesse um acordo de livre comércio com a China, em vez de ter mais abertura e
liberdade, poderia ter uma maior dependência econômica, incluindo maiores
impactos ambientais. Por outro lado, pode ser que o acordo seja ótimo, com
muito crescimento para o Uruguai, mas acredito que o debate não é feito com a
profundidade necessária para que a população esteja informada do que está
acontecendo."
Nilson avalia que o Uruguai não vai sair do Mercosul porque depende muito do
bloco na esfera econômica. Além disso, Montevidéu sabe da importância das
relações diplomáticas com Brasil e Argentina, que ficariam comprometidas caso
houvesse uma mudança no status quo do Mercosul.
Venezuela
Durante a Cúpula do Mercosul, o Uruguai também se distanciou da posição de
Brasil e Argentina em relação a uma possível volta da Venezuela ao bloco.
Caracas foi suspensa pelos outros membros em virtude da crise política e
democrática do regime de Nicolás Maduro em 2016.
"Todos aqui sabem o que pensamos sobre o regime venezuelano. Você tem que
tentar ser objetivo. É claro que a Venezuela não conseguirá uma democracia
quando se vislumbra a possibilidade de eleições e uma candidata como María
Corina Machado, de enorme potencial, for desclassificada por motivos políticos
e não jurídicos", apontou o presidente uruguaio sobre a líder das
intenções de voto na Venezuela, que foi impedida de concorrer nas eleições que
estão marcadas para o ano que vem.
Para Nilson, Lacalle Pou aplica uma retórica de confronto em relação a
Venezuela na política externa para tentar ganhar frutos em cima disso em
questões internas. "O Uruguai tem uma tradição em política externa de não
julgar outros países por sua política interna, e acredito que Lacalle Pou
quebrou essa tradição em uma tentativa de atacar a esquerda uruguaia",
afirma o especialista.
O professor de relações internacionais avalia que é difícil chegar a um
consenso dentro da América do Sul sobre a melhor forma de lidar com a
Venezuela, mas que a chancelaria uruguaia não está interessada em construir
pontes. "Existe uma importância do discurso de Lacalle Pou para a
sociedade uruguaia, mas externamente não vai levar a algum tipo de mediação com
a Venezuela porque a política externa uruguaia não está voltada para
isso", finaliza Nilson.
Fonte: Estadão Conteúdo
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