Com discurso contundente, Kamala Harris
aceitou a nomeação para disputar a presidência no último dia de Convenção
Nacional do Partido Democrata. Diante de uma multidão energizada, ela descreveu
a eleição como uma oportunidade de superar o passado de "amargura e
cinismo", representado na figura de Donald Trump.
"Ele quer nos levar de volta ao passado, mas não vamos retroceder",
disse Kamala Harris ao apontar o adversário como uma ameaça aos Estados Unidos,
apelando aos eleitores para considerar o que ele fará se voltar ao poder.
"Imaginem Donald Trump sem freio nenhum. E como ele usaria o poder imenso
da presidência dos EUA. Não para melhorar a sua vida, ou para aumentar nossa
segurança, mas para servir o único cliente que ele sempre teve: ele mesmo",
disse ela na noite desta quinta-feira, 22.
Foi uma autorreferência. Durante o discurso, Kamala relembrou suas origens numa
família de imigrantes da classe média e contou que decidiu estudar direito por
causa da amiga de escola Wanda, que era sexualmente abusada pelo padrasto.
"Enquanto procuradora, eu nomeava as ações não em nome da vítima, mas em
nome do povo. Por uma razão simples. No nosso sistema de Justiça, o dano a um
de nós é um dano a todos nós", disse. "Todos os dias no tribunal eu
me colocava orgulhosamente diante do juiz e dizia quatro palavras: Kamala
Harris pelo povo. Eu tive um único cliente em toda minha carreira: o
povo".
Kamala Harris pelo povo foi, inclusive, o seu lema de campanha em 2020, quando
disputou a nomeação democrata. Sem conseguir deslanchar, acabou virando
vice-presidente de Joe Biden, antes de se tornar a segunda mulher - depois de
Hillary Clinton - e a primeira mulher não branca a disputar a presidência por
um grande partido dos Estados Unidos.
"Em nome do povo e todos os americanos independentemente de fé, credo ou
etnia, e em nome das pessoas que trabalham duro e cuidam um dos outros, de
todos cuja história só poderia ser escrita no melhor do país do mundo, eu
aceito a nomeação para disputar a presidência dos Estados Unidos", declarou.
Em seu discurso, fez acenos claros à classe trabalhadora, eleitorado que deve
ser decisivo nas eleições, apresentado a chapa democrata como a única que seria
capaz de entender e atender aos anseios do americano comum.
"Vamos fazer a economia crescer e reduzir os preços. E vamos facilitar o
acesso a crédito", prometeu. "Agora comparem isso com Donald Trump.
Ele não luta pela classe média. Ele luta por ele mesmo e para os amigos
bilionários dele. E ele vai cortar impostos desse pessoal", acusou.
Kamala passou por temas caros à base democrata, como acesso ao aborto, acusando
Donald Trump de tirar a liberdade das mulheres com a nomeação dos juízes
conservadores que reverteram Roe versus Wade. "Ele vai criar um programar
para banir o aborto nacionalmente. Ele vai forçar os Estados a informar os
abortos, espontâneos ou não. Em resumo: ele está maluco", declarou, embora
Trump tenha descartado a proibição nacional e afirme que pretende manter a
decisão com os Estados.
A democrata seguiu dizendo que outras liberdades também estão em risco, como a
de viver em segurança. Esse foi outro destaque da última noite de Convenção
Nacional do Partido Democrata, que levou vítimas da violência armada ao palco
do United Center.
Em meio às críticas a Donald Trump, ela aproveitou para atacar uma das
principais bandeiras do concorrente: a imigração. Kamala acusou o republicano
de matar o projeto bipartidário para reforçar a segurança na fronteira,
argumento antecipado nos discursos ao longo da Convenção. "Eu me recuso a
fazer política com a segurança da nossa fronteira como ele fez", disse.
Sobe a política externa, Kamala destacou as negociações do governo americano
pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza e afirmou que sempre defenderá "o
direito de Israel de ser defender e ter acesso ao que precisa para se
defender", disse. "Ao mesmo tempo o que acontece em Gaza é
desesperador", reconheceu. "A escala de sofrimento é de partir o
coração. Por isso, queremos encerrar a guerra para que o palestinos tenham
direito a liberdade, segurança e autodeterminação."
Destaque para os direitos civis
Kamala, que pode ser a primeira mulher se tornar presidente dos Estados Unidos,
afirmou em seu discurso que cresceu "nos valores dos direitos civis",
ao relembrar o ativismo dos pais, Shyamala Gopalan e Donald Harris, no
movimento.
A luta pelos direitos civis foi um tema central na última noite da Convenção
Democrata, com o discurso de Al Sharpton, que abordou o racismo de forma mais
incisiva ao longo dos quatro dias de evento, sendo um dos momentos mais
marcantes desta quinta-feira. "Nós sofremos, morremos e sangramos, fomos
para a cadeia para ter o direito de votar. Nós não vamos voltar",
enfatizou.
Sharpton destacou a natureza histórica da nomeação de Kamala, observando que,
52 anos atrás, ele era o jovem diretor da campanha de Shirley Chisholm
(primeira mulher negra a ser eleita ao Congresso americano) para as primárias
do Partido Democrata em 1972.
Ele também criticou Donald por gastar uma "pequena fortuna" ao
comprar um anúncio em uma página inteira de jornal pedindo a pena de morte para
adolescentes no caso "Central Park Five", que condenou injustamente
cinco jovens por um estupro no Central Park, em Nova York, em 1989. Quatro dos
cinco, que foram inocentados depois de pegar entre seis e 13 anos de prisão,
subiram ao palco da convenção após o discurso de Sharpton, provocando uma forte
reação do público.
O ativista Korey Wise também lembrou do papel que Trump teve na época do
julgamento. "Meus amigos e eu fomos presos por um crime que não cometemos.
Nossos anos foram tirados de nós. Todos os dias quando entramos no tribunal as
pessoas gritavam conosco por causa de Donald Trump. Ele pagou por um anúncio
nos jornais de NY pedindo que fôssemos executados", disse ele ao que a
plateia respondeu com vaias. "Éramos crianças inocentes".
Yusef Salaam, que hoje atua no Conselho da Cidade de Nova York, reforçou:
"Ele queria que fôssemos mortos. Hoje, estamos inocentados porque o real
estuprador confessou e isso foi provado. Aquele cara diz que ainda defende o
veredicto inicial, ele nega as evidências científicas no lugar de admitir que
estava errado. Ele nunca mudou e nunca vai mudar", declarou aplaudido pela
multidão. "A América vai dizer adeus aquele homem odioso". Até hoje,
Trump se recusa a se desculpar pelo anúncio pago na época.
'Nem para mover meu sofá'
Num momento mais descontraído da Convenção, a senadora Elizabeth Warren, de
Massachusetts, que foi rival de Kamala ao tentar a indicação presidencial
democrata em 2020, provocou uma onda de gritos e risadas entre os democratas ao
dizer que não confiaria em Trump e J.D. Vance "para mover meu sofá".
A declaração da democrata foi uma referência a um boato infundado de que Vance,
o vice de Trump, teria feito sexo com um sofá. "Confiar em Donald Trump e J.D.
Vance para cuidar da sua família? Droga, eu não confiaria neles para mover meu
sofá", disse.
Referindo-se a Trump como "o criminoso", a senadora ainda comparou a
atuação de Kamala com a de Trump após a crise financeira de 2008.
"Kamala estava protegendo famílias", disse. "E Donald estava
enganando estudantes na Trump University e tentando ganhar dinheiro com pessoas
que estavam perdendo suas casas". "Essa é a diferença entre um
criminoso e um promotor", afirmou a senadora
A noite democrata também deu espaço para um republicano subir ao palco. O
ex-deputado Adam Kinzinger, um conhecido crítico de Trump, mandou um recado
direto aos colegas de partido no palco da Convenção Democrata.
"Fui republicano por 12 anos no Congresso e ainda mantenho esse rótulo.
Nunca pensei que estaria aqui, mas vocês também nunca pensaram que me veriam
aqui, não é mesmo?", disse rindo. "Aprendi algo sobre o Partido
Democrata e quero contar o segredo aos meus colegas republicanos: os democratas
são tão patriotas quanto nós".
"Aos meus colegas republicanos: se vocês ainda juram lealdade a esses
princípios, suspeito que vocês também pertencem a este lugar", declarou
Kinzinger, que acusou Trump de ser um "homem fraco que finge ser
forte" e de "sufocar a alma do Partido Republicano".
A participação de Kinzinger faz parte de uma estratégia da campanha democrata
de tentar conquistar o apoio de republicanos que não se identificam com o
extremismo de Trump. Em seu discurso, Kamala fez um apelo a este público.
"Sei que há pessoas de várias visões políticas assistindo esta noite, e
quero que saibam que prometo ser um presidente para todos os americanos",
disse Kamala. "Prometo ser um presidente para todos os americanos para
manter os princípios constitucionais sagrados da América, princípios
fundamentais, desde o estado de direito e eleições justas até a transferência
pacífica de poder."
Fonte: Estadão conteúdo
Foto: Reprodução Instagram