a América Latina e no Brasil, o Estado não está em crise apenas por razão fiscal. Há uma outra causa, menos aparente - e mais grave –, que explica parte considerável da falência e da ineficiência das estruturas estatais no continente - além da própria crise fiscal: o crime organizado, infiltrado nas teias das várias instituições públicas e alimentado pelo narcotráfico e demais organizações criminosas, em íntima parceria.
Trata-se de uma “economia” paralela,
ascendente, que já “emprega” milhões de pessoas e que se alastra sob o preço da
disseminação da corrupção e da violência, resultando em um estado de guerra
civil e de barbárie, estampado, diariamente nas ruas e esquinas das grandes
cidades.
Cuba, Venezuela, Bolívia e Colômbia
são alguns dos exemplos mais conhecidos e ilustrativos. O Brasil já segue, a
passos largos, na mesma trajetória, com inúmeros “representantes” da
contravenção estrategicamente instalados nas artérias dos principais órgãos do
sistema público de governança e da Justiça, por esses monitorados e
manipulados. É isso que elucida, em boa medida, a institucionalização da
impunidade, a compra de políticos e magistrados, os financiamentos de campanhas
por meio de “caixa 2” e a grande dificuldade de reversão do estado burocrático
em que vivemos -cuja complexidade é funcional para o sucesso das ações
cartoriais que se movem, em surdina, nos incontáveis labirintos institucionais.
Manipulação da máquina
Muitas das agremiações partidárias
que proliferaram no País ao longo dos últimos anos, como “negócio”, são
mantidas por esses recursos canalizados do contrabando e da contravenção, para
além do Fundo Público - outro assalto oficializado -, previsto em lei. São
organizações formais de fachada, protegidas por leis e pela própria
Constituição, que não obstante escondem da massa de filiados - inocentes úteis
- e da sociedade as verdadeiras motivações que movem a sua “ação política”.
O crime organizado manipula bancadas
parlamentares em todos os níveis, desde Câmaras de Vereadores ao Congresso
Nacional, passando por Assembleias Legislativas e outras instâncias coletivas
de representação, da mesma forma que captura executivos de primeiro e segundo
escalões dos entes federativos e seduz e corrompe delegados, policiais,
procuradores, juízes - incluídos desembargadores e ministros das Altas Cortes -
e, até militares da alta cúpula, garantindo, ao fim e ao cabo, o conteúdo cleptocrático que
permeia e compromete a já frágil e instrumentalizada “democracia
representativa” no continente.
Afronta ao Estado
Fortes indícios de vultuosos
financiamentos externos a partidos políticos, explicitamente proibidos pela
Constituição de 1988, já foram identificados em terras “verdevaldianas” e
estão, no momento, sob detalhada investigação. Uma vez comprovados, poderão
levar, no futuro - num outro quadro de correlação de forças -, à cassação
definitiva de algumas dessas agremiações contraventoras, independentemente da
relevância das siglas envolvidas, com forte impacto na vida política do País.
Tal afronta - e, mesmo, desdém - ao Estado de Direito denota, de forma
particularmente ilustrativa, a gravidade do nível de metástase sistêmica a que
chegamos e a face mais sombria de uma realidade que aponta para a ausência de
uma institucionalidade que se aproxime, minimamente, do que se poderia esperar de
uma república efetiva.
Um dos maiores analistas da evolução
do modelo democrático liberal na contemporaneidade, o filósofo italiano
Norberto Bobbio, já alertava para o fenômeno do “poder invisível” - ou do
“duplo Estado”, na acepção do cientista político norte-americano Alan Wolfe -,
por eles considerados uma das maiores ameaças à consolidação e aos avanços
desse regime político, no presente e no futuro.
Perversão da lógica
Segundo os autores, tal “poder” se
manifesta e age, secretamente, nos escaninhos recônditos das instâncias
públicas de governança, influenciando e contaminando agentes políticos
estrategicamente situados em suas respectivas arenas decisórias, os quais
passam a redirecionar o produto de suas ações - leis, normas, sentenças, jurisprudência
e atos executivos - para fins unicamente corporativos - e ilícitos -,
favoráveis a seus apoiadores e financiadores, subvertendo a lógica republicana
de compromisso com o “interesse geral” - da maioria da população - e ferindo de
morte a própria democracia. São máfias, lojas maçônicas anômalas, serviços
secretos, agências de agiotagem e chantagem, hackers, seitas
religiosas e ideológicas e redes de narcotráfico - de feição local, nacional ou
internacional - que, também associados a agências financeiras, uma vez
infiltrados nas estruturas oficiais de poder, apropriam-se das “trincheiras” do
Estado e da sociedade civil - entidades de classe, sindicatos, imprensa e redes
sociais - para fins “cabulosos”, desviando e desvirtuando políticas públicas em
favor dos próprios interesses, com desestabilização da ordem político-econômica
e inevitável comprometimento de sua sustentabilidade no tempo - além de enormes
prejuízos civilizatórios, em longo prazo.
“Hegemonia do crime”
Fato é que a “hegemonia do crime” não
é uma questão de natureza unicamente moral ou política. Trata-se, igualmente e
sobretudo, de um problema de ordem econômica. Tráfico de drogas,
propina, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha não rimam com produção
sustentável de riquezas, desenvolvimento, progresso humano, tampouco com
qualificação profissional, meritocracia, competitividade e inovação. Ao
contrário: combinam com subdesenvolvimento, caos, saque, oportunismo e
manipulação, importando numa espécie de “extrativismo econômico” que, a médio
prazo, lega à sociedade, tão somente, os buracos estéreis do roubo. E isto é
gravíssimo num mundo movido, cada vez mais, pelo conhecimento, pela inovação,
pelo desenvolvimento científico e tecnológico e pelo empreendedorismo
produtivo, que supõem, para a sua efetivação conjunta, a acumulação concertada
de boas práticas institucionais - e não a extração de riquezas para fins
improdutivos.
Despotismo cibernético
Diante desse quadro ameaçador, não
menos relevante é reconhecer que o controle público do poder -
portanto, a pujança e solidez da democracia - torna-se ainda mais necessário e
decisivo que antanho, particularmente num contexto em que, graças aos avanços
das tecnologias da informação e comunicação, os decision makers, de
forma inédita, passam a dispor, como jamais outrora, de conhecimento amplo e
detalhado sobre o que faz e o que pensa cada um dos cidadãos reduzidos a bits,
confirmando-se a profecia de George Orwell quanto ao advento de uma época
apavorante de despotismo cibernético - agravada e temperada, em continente
latino-americano, por uma sórdida e avassaladora devassidão.
Cruz e caldeirinha
Sim, no Brasil e na América Latina, a
tenra e frágil ordem democrática, sempre açoitada pela história e seus algozes
de plantão, ante as novas ameaças de legalização despudorada de salvaguardas à
delinquência - patrocinada, justo, pelos agentes do “Estado paralelo” -, vive
um momento crucial de sua trajetória: ou avança sobre o crime e redesenha as
suas instituições na base de novos regramentos e mentalidade, forjados por
uma ética republicana - voltada ao “interesse geral” da
sociedade -, ou sucumbe, em definitivo, ao império da transgressão e do
corporativismo sicário - emulação à qual se vinculam os desdobramentos
correspondentes de seu futuro e destino. A opção entre democracia e
cleptocracia - ou entre civilização e barbárie - é a bifurcação inescapável que
se apresenta no horizonte mais imediato do cruzamento de nossa história.