Crime organizado e política: captura e perversão do Estado pela bandidagem oficializada

Brasil vive uma metamorfose devastadora de suas instituições, hoje dominadas, em todas as instâncias de poder, pelo crime organizado.

Por Alex Fiúza de Mello | Sociólogo e Cientista político

27/10/2024 11:00
Crime organizado e política: captura e perversão do Estado pela bandidagem oficializada
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a América Latina e no Brasil, o Estado não está em crise apenas por razão fiscal. Há uma outra causa, menos aparente - e mais grave –, que explica parte considerável da falência e da ineficiência das estruturas estatais no continente - além da própria crise fiscal: o crime organizado, infiltrado nas teias das várias instituições públicas e alimentado pelo narcotráfico e demais organizações criminosas, em íntima parceria.


Narcotráfico e organizações criminosas se expandem em todas as instâncias de poder e o País não tem resposta minimamente necessária para responder/Fotos: Divulgação.
 

Trata-se de uma “economia” paralela, ascendente, que já “emprega” milhões de pessoas e que se alastra sob o preço da disseminação da corrupção e da violência, resultando em um estado de guerra civil e de barbárie, estampado, diariamente nas ruas e esquinas das grandes cidades.

 

Cuba, Venezuela, Bolívia e Colômbia são alguns dos exemplos mais conhecidos e ilustrativos. O Brasil já segue, a passos largos, na mesma trajetória, com inúmeros “representantes” da contravenção estrategicamente instalados nas artérias dos principais órgãos do sistema público de governança e da Justiça, por esses monitorados e manipulados. É isso que elucida, em boa medida, a institucionalização da impunidade, a compra de políticos e magistrados, os financiamentos de campanhas por meio de “caixa 2” e a grande dificuldade de reversão do estado burocrático em que vivemos -cuja complexidade é funcional para o sucesso das ações cartoriais que se movem, em surdina, nos incontáveis labirintos institucionais.

 

Manipulação da máquina

 

Muitas das agremiações partidárias que proliferaram no País ao longo dos últimos anos, como “negócio”, são mantidas por esses recursos canalizados do contrabando e da contravenção, para além do Fundo Público - outro assalto oficializado -, previsto em lei. São organizações formais de fachada, protegidas por leis e pela própria Constituição, que não obstante escondem da massa de filiados - inocentes úteis - e da sociedade as verdadeiras motivações que movem a sua “ação política”.

 

O crime organizado manipula bancadas parlamentares em todos os níveis, desde Câmaras de Vereadores ao Congresso Nacional, passando por Assembleias Legislativas e outras instâncias coletivas de representação, da mesma forma que captura executivos de primeiro e segundo escalões dos entes federativos e seduz e corrompe delegados, policiais, procuradores, juízes - incluídos desembargadores e ministros das Altas Cortes - e, até militares da alta cúpula, garantindo, ao fim e ao cabo, o conteúdo cleptocrático que permeia e compromete a já frágil e instrumentalizada “democracia representativa” no continente.

 

Afronta ao Estado

 

Fortes indícios de vultuosos financiamentos externos a partidos políticos, explicitamente proibidos pela Constituição de 1988, já foram identificados em terras “verdevaldianas” e estão, no momento, sob detalhada investigação. Uma vez comprovados, poderão levar, no futuro - num outro quadro de correlação de forças -, à cassação definitiva de algumas dessas agremiações contraventoras, independentemente da relevância das siglas envolvidas, com forte impacto na vida política do País. Tal afronta - e, mesmo, desdém - ao Estado de Direito denota, de forma particularmente ilustrativa, a gravidade do nível de metástase sistêmica a que chegamos e a face mais sombria de uma realidade que aponta para a ausência de uma institucionalidade que se aproxime, minimamente, do que se poderia esperar de uma república efetiva.

 

Um dos maiores analistas da evolução do modelo democrático liberal na contemporaneidade, o filósofo italiano Norberto Bobbio, já alertava para o fenômeno do “poder invisível” - ou do “duplo Estado”, na acepção do cientista político norte-americano Alan Wolfe -, por eles considerados uma das maiores ameaças à consolidação e aos avanços desse regime político, no presente e no futuro.

 

Perversão da lógica

 

Segundo os autores, tal “poder” se manifesta e age, secretamente, nos escaninhos recônditos das instâncias públicas de governança, influenciando e contaminando agentes políticos estrategicamente situados em suas respectivas arenas decisórias, os quais passam a redirecionar o produto de suas ações - leis, normas, sentenças, jurisprudência e atos executivos - para fins unicamente corporativos - e ilícitos -, favoráveis a seus apoiadores e financiadores, subvertendo a lógica republicana de compromisso com o “interesse geral” - da maioria da população - e ferindo de morte a própria democracia. São máfias, lojas maçônicas anômalas, serviços secretos, agências de agiotagem e chantagem, hackers, seitas religiosas e ideológicas e redes de narcotráfico - de feição local, nacional ou internacional - que, também associados a agências financeiras, uma vez infiltrados nas estruturas oficiais de poder, apropriam-se das “trincheiras” do Estado e da sociedade civil - entidades de classe, sindicatos, imprensa e redes sociais - para fins “cabulosos”, desviando e desvirtuando políticas públicas em favor dos próprios interesses, com desestabilização da ordem político-econômica e inevitável comprometimento de sua sustentabilidade no tempo - além de enormes prejuízos civilizatórios, em longo prazo.

 

“Hegemonia do crime”

 

Fato é que a “hegemonia do crime” não é uma questão de natureza unicamente moral ou política. Trata-se, igualmente e sobretudo, de um problema de ordem econômica. Tráfico de drogas, propina, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha não rimam com produção sustentável de riquezas, desenvolvimento, progresso humano, tampouco com qualificação profissional, meritocracia, competitividade e inovação. Ao contrário: combinam com subdesenvolvimento, caos, saque, oportunismo e manipulação, importando numa espécie de “extrativismo econômico” que, a médio prazo, lega à sociedade, tão somente, os buracos estéreis do roubo. E isto é gravíssimo num mundo movido, cada vez mais, pelo conhecimento, pela inovação, pelo desenvolvimento científico e tecnológico e pelo empreendedorismo produtivo, que supõem, para a sua efetivação conjunta, a acumulação concertada de boas práticas institucionais - e não a extração de riquezas para fins improdutivos.

 

Despotismo cibernético

 

Diante desse quadro ameaçador, não menos relevante é reconhecer que o controle público do poder - portanto, a pujança e solidez da democracia - torna-se ainda mais necessário e decisivo que antanho, particularmente num contexto em que, graças aos avanços das tecnologias da informação e comunicação, os decision makers, de forma inédita, passam a dispor, como jamais outrora, de conhecimento amplo e detalhado sobre o que faz e o que pensa cada um dos cidadãos reduzidos a bits, confirmando-se a profecia de George Orwell quanto ao advento de uma época apavorante de despotismo cibernético - agravada e temperada, em continente latino-americano, por uma sórdida e avassaladora devassidão.

 

Cruz e caldeirinha


Sim, no Brasil e na América Latina, a tenra e frágil ordem democrática, sempre açoitada pela história e seus algozes de plantão, ante as novas ameaças de legalização despudorada de salvaguardas à delinquência - patrocinada, justo, pelos agentes do “Estado paralelo” -, vive um momento crucial de sua trajetória: ou avança sobre o crime e redesenha as suas instituições na base de novos regramentos e mentalidade, forjados por uma ética republicana - voltada ao “interesse geral” da sociedade -, ou sucumbe, em definitivo, ao império da transgressão e do corporativismo sicário - emulação à qual se vinculam os desdobramentos correspondentes de seu futuro e destino. A opção entre democracia e cleptocracia - ou entre civilização e barbárie - é a bifurcação inescapável que se apresenta no horizonte mais imediato do cruzamento de nossa história.

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