A Constituição Brasileira ganhou uma versão no idioma nheengatu, criado a partir do tupi antigo e utilizado por mais de 25 mil pessoas de diferentes etnias até hoje. O texto será lançado na quarta-feira, 19, pela ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Nascido às margens do Rio Içana, na fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela, o professor Edilson Martins foi alfabetizado no idioma baníwa, falado por indígenas da região, e integrou um grupo de 15 tradutores e consultores, formados por indígenas bilíngues, além de advogados e representantes do Tribunal de Justiça do Amazonas, mobilizados pelo CNJ e STF para executar o trabalho.
"Num passado recente, sofríamos preconceito ao sairmos do interior das aldeias por não falarmos português. Essa iniciativa vem ao encontro do anseio de valorização dos povos indígenas. Além disso, vem concretizar os direitos que o próprio texto constitucional, principalmente nos artigos 231 e 232, garante, que são o reconhecimento aos índios dos seus costumes, línguas, crenças, tradições e terras que ocupam”, disse Martins.
Diariamente, por pelo menos três horas e ao longo de três meses, eles se dedicaram a interpretar, compreender e buscar sinônimos das expressões jurídicas da Carta Magna brasileira. Rosa Weber se empenhou institucionalmente pela realização do projeto.
"A nossa Constituição Cidadã de 1988 expressa os anseios da sociedade brasileira, formada ao longo dos séculos por grupos sociais das mais variadas origens étnicas, que lograram resistir à colonialidade e à escravidão. Ao traduzir a nossa Lei Maior ao idioma nheengatu, preservado por comunidades distribuídas na Região Amazônica, buscamos efetivar a igualdade, assegurando o acesso à informação e à justiça e permitindo que os povos indígenas conheçam os direitos, os deveres e os fundamentos éticos e políticos que dão sustentação ao nosso Estado Democrático de Direito”, disse a magistrada.
O nheengatu começou a se formar pelo contato entre indígenas de diferentes etnias no período colonial e sofreu influência dos portugueses, sobretudo dos missionários religiosos que buscaram gramatizá-la e padronizá-la. Dados do Censo do IBGE em 2010, mostram que o Brasil tinha à época 274 línguas indígenas para uma população de 817.963 mil originários de 305 etnias. Esses números serão atualizados em agosto, com o Censo de 2023, mas mostram que o projeto é o primeiro passo dessa integração.
A juíza Andrea Medeiros, do Tribunal de Justiça do Amazonas e uma das coordenadoras-executivas do projeto, conta que palavras corriqueiras no universo jurídico viraram enorme desafio para a tradução. Entre elas, pensão alimentícia, imposto e precatório. Um grupo de WhatsApp foi criado para discutir o processo e reuniões virtuais uniam a equipe espalhada por cinco cidades da imensidão amazônica.
"Além das reuniões semanais virtuais, criamos um grupo no WhatsApp em que ficávamos à disposição para discutirmos termos técnicos que não são do dia a dia dos indígenas, como pensão alimentícia, imposto, precatório", disse Medeiros.
Presidente da Academia de Nheengatu, Edison Cordeiro Gomes pertence ao povo Baré, que vive no curso do Rio Negro, e conta que o nheengatu se fez ainda mais presente na região diante do isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19. Na ocasião, ele passou a publicar vídeos nas redes sociais sobre os cuidados necessários para evitar a disseminação do vírus. Rapidamente, o conteúdo com o idioma foi compartilhado pelos vizinhos em perfis no Instagram e Facebook.
"Nosso maior desafio foi não criarmos palavras novas, mas darmos sentido às que já existem. Como muitas das expressões em português não existem no nosso idioma, precisávamos pensar em como explicar esses termos aos falantes. Nunca havíamos nos deparado com portarias, decretos e artigos”, disse.
(Com O Globo)