Este é um ano de eleições municipais no Brasil. Serão eleitos 5.570 prefeitos, igual número de vice-prefeitos e milhares de vereadores. A movimentação já começou e se intensificou na primeira semana de abril, fim da janela partidária, destinada a que os pré-candidatos se filiem a uma legenda ou migrem de uma sigla para a outra.
As eleições, livres e diretas, são a prova concreta da consolidação da democracia no país. Esse grande evento democrático, no entanto, costuma mascarar um problema grave do Brasil, quase nunca analisado com o cuidado que merece: a farra de criação de municípios ao longo das últimas três décadas e meia.
Quando a “Constituição Cidadã” foi promulgada, em 1988, o Brasil tinha 4.121 municípios. Desde então, foram criados outros 1.449 e atualmente são 5.570. Um aumento de 35%. O Censo 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que praticamente um quarto (24,48%) dos municípios brasileiros têm população menor que 5 mil habitantes. Outros 23,55% possuem entre 5 mil e 10 mil habitantes, número parecido (23,33%) dos municípios com população entre 10 mil e 20 mil pessoas.
Aqueles cuja população fica entre 20 mil e 50 mil habitantes somam 18,45%. Isso quer dizer que a imensa maioria (89,90%) é formada por municípios pequenos, sendo o menor deles Serra da Saudade, no Mato Grosso do Sul, onde vivem apenas 833 habitantes. O contraste é enorme com São Paulo, com seus 11,45 milhões de habitantes, o que faz da capital paulista a cidade mais populosa do Brasil.
Tão grave quanto o surgimento desenfreado de cidades autônomas é o fato que que mais de 80% dos municípios criados após a CF/88 não possuem condições de subsistência sem os recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) – formado pela cotaparte do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) – e da cota-parte dos impostos estaduais Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) - 25% do total do estado são destinados aos municípios - e 50% do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), também com destinação municipal conforme legislação vigente que disciplina e estabelece os critérios dos rateios.
É certo que municípios sem receitas não possuem capacidade econômico-financeira para realizar os investimentos necessários a fim de garantir serviços básicos de qualidade aos seus cidadãos, como saneamento, saúde, habitação, creches que permitam às mães trabalharem fora para ajudar no sustento familiar, mobilidade urbana – com calçadas adequadas para cadeirantes, gestantes e idosos -, segurança pública e educação.
Nada disso parece ter sido levado em conta, pois nesses 35 anos permitiu-se e até foi incentivada a criação de municípios, quase sempre para atender a interesses políticos, sem o correto dimensionamento de suas consequências.
Quase nada é falado a esse respeito, principalmente sobre o efeito imediato: mais municípios significam mais gastos públicos. Há que se considerar que, a cada novo município, são criados os vencimentos do prefeito, do vice, dos secretários, dos vereadores e dos servidores, e as despesas com toda a estrutura administrativa que requerem a Prefeitura e a Câmara Municipal.
Aos gestores e suas equipes são reservadas as melhores remunerações, custeadas pela população, via pagamento de tributos. Vale lembrar que as candidaturas são financiadas pelo Fundo Eleitoral, cujos recursos chegam ao estratosférico valor de R$ 4,9 bilhões.
É preciso considerar, ainda, o custo médio de um servidor municipal, da ordem de R$ 4.000,00/mês, ou cerca de 2,8 salários mínimos, valor superior aos ganhos da maioria esmagadora da população.
Hoje o número de vereadores e assessores em todo o Brasil supera 580 mil. Somando-se Executivo e Legislativo e contabilizando-se também os ocupantes desses cargos públicos e seus assessores, temos quase 730 mil pessoas custeadas pela máquina pública nos três níveis – Federal, Estadual e Municipal. O número é infinitamente maior se considerados os funcionários públicos concursados e ocupantes de cargos em comissão.
É óbvio que a proliferação de municípios contribuiu para aumentar a já gigantesca máquina pública, um setor que exige mais e mais recursos públicos para a sua manutenção. Para se ter uma ideia, em 2001 os gastos com o funcionalismo público brasileiro foram de R$ 63,20 bilhões/ano. Menos de duas décadas depois, em 2018, somaram R$ 298 bilhões/ano, um aumento nominal de R$ 234,80 bilhões/ano.
Reportagem do jornal Folha de S. Paulo publicada em janeiro de 2024, mostrou que o déficit atuarial previdenciário dos servidores públicos atingiu R$ 6 trilhões, valor equivalente a 93% da dívida pública líquida do país.
O funcionalismo público municipal tem um custo correspondente a 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, ou seja, de R$ 457 bilhões, em valores atuais. Em todos os níveis, as despesas com o funcionalismo público corresponderam, em 2022, a 12,80% do PIB. É mais do que a soma de todos os gastos com educação, saúde e saneamento, que totalizaram 9,63% do PIB. Uma conta muita alta, sem dúvida.
Criar municípios indiscriminadamente, sem a análise profunda de critérios econômicos significa ampliar o número de cidades dependentes unicamente de verbas federais e estaduais, sem perspectiva concreta de desenvolvimento, subsidiando prefeitos fadados a atuar eternamente com o pires na mão, enquanto a população clama por serviços essenciais para uma vida digna.
Este não é, definitivamente, um caminho inteligente para um país que precisa retomar o rumo do desenvolvimento.
*Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). É autor dos livros “Brasil, um país à deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”.